11 de julho de 2010

Embriaguez... de quê afinal?

SWP
           Naquela noite caminhava desligada pelas ruas do Humaitá, mal conseguindo distinguir as coisas das pessoas, em meio a uma sensação que me colocava em uma acertada conjunção com o mundo. É verdade que as várias taças de vinho que eu bebera tinham contribuído para aquele estranho sentimento do mundo. De qualquer forma estava leve, corpo e alma. E mais do que isto, coisa rara, achava-me perfeitamente capaz de entender o mundo. Naquele estado de embriaguez, rumava absorta para algum lugar sob a noite estrelada que eu sequer notara. Ao atravessar a primeira rua, ouvi um chamado claro.
           – Would thou be so gentle as to give a lost soul an information? Am I entirely lost in this place! Olhei espantada na direção daquele inglês pouco compreensível e arcaico. Custei a reconhecer a esdrúxula figura. É bem verdade que estivera com ele o dia inteiro, mas nem de longe imaginava encontrá-lo ali àquela hora. Meio trêmula de emoção, caminhei em direção ao mestre bardo. Porém, ele já não mais se dava conta da minha companhia. Alheio, pensava em voz alta na construção do seu próximo personagem. Na tibiez daquele futuro rei que tantos males viria a causar ao reino da Inglaterra. Nas sangrentas lutas que estavam por vir. De mansinho, mas a contragosto, afastei-me com
medo de perturbar tão solene momento. A vontade era ficar ali e sorver até a última gota o que pudesse me ajudar a apreender os meandros da arte da escrita.
           Retomei o meu caminho para, na próxima esquina, deparar-me, sentado em uma mesa de bar, com Camus. Parecia meio amargurado e tinha à mão a versão final da “Queda”, a trajetória de vida daquele advogado, outrora bem sucedido na vida, que ciente da circunstância humana se auto-intitulava agora um juiz itinerante e estava apenas à espera da morte. Fugi apressada e amedrontada daquele cenário. Nada a ver com meu estado de espírito.
           Esbarrei, adiante, saído de não sei onde (um não sei onde que pode ter sido de trás de uma das árvores) com ninguém menos do que o Rosa. A emoção foi talvez maior. Com um ar matreiro ele parecia divertir-se com o meu medo. Lendo meus pensamentos, olhava-me como se me dissesse que talvez fosse tarde demais para que eu fosse capaz de levar a cabo a tarefa a que me propunha. Apreender os meandros da arte da escrita é tarefa para uma vida inteira, inteirinha! E, mais do que isto,
pra poucos. Ou, talvez, quisesse dizer apenas que não há nada de misterioso na arte de escrever. Será que basta saber usar a língua e juntar uma pitadinha de inspiração? Já me preparava para escutá-lo quando ele, assim, meio arisco, decidiu seguir o seu caminho. Ah, que tristeza!
           Ainda mal recomposta daquela decepção, vi aproximar-se o Calvino com as suas propostas para a literatura... Ele, sim, poderia me dar o norte que andava procurando. Claro, com sua sofisticação ao pensar a literatura, não tinha ele, e, com quanta modéstia, sugerido as propostas para o próximo milênio? Quem mais poderia desejar encontrar? Outros sim; ele, certamente. Corri animada ao encontro do mestre que, com seu encanto, me despertou para os encantos da escrita. Porém, por apressada que sou, ele também não me deu grande alento. – É uma conquista paulatina, disse reconfortando-me. Saber reconhecer a leveza, a rapidez, a exatidão, a visibilidade, a multiplicidade, enfim, o valor da obra escrita demanda tempo. Não é tarefa de meio-horário.
           Podia continuar a lista das várias outras leituras recentes que andam me assombrando. Porém é fácil concluir que a embriaguez não era bem do vinho, mas, da arte da escrita, que me tem cativado como nunca, com ou sem a ajuda do vinho. Das alternativas de Baudelaire – virtude, vinho ou poesia – escolho a última.

Nenhum comentário:

Postar um comentário