8 de julho de 2010

Espontaneidade e ritmo na escrita

Bia Albernaz
          Em luta corporal, cada um se encontra quando pega o ônibus, atravessa a rua, perfila-se no banco, senta-se na praça, descansa no jardim ou conversa com o cachorro. E a carga de motivação psíquica, orgânica e social nesses atos imprime ritmos determinados na fala. Um escritor emprega tempo a escutá-la, a rememorá-la, em suas variações de altura, intensidade, tom e duração. Escrever um poema como uma partitura era o que fazia Mallarmé. Em seus últimos romances, Saramago suprimiu total ou parcialmente a pontuação. A entoação desvela movimentos da alma e demarca a linha melódica do texto. Ritmo é tempo qualificado; intenção premeditada ou ímpeto e rompantes, cadenciados ou não.
          Kerouac, Ginsberg e outros escritores da chamada geração beat inventaram uma prosódia, à procura da espontaneidade do jazz. Entregavam-se ao fluxo da consciência, no qual o primeiro pensamento é o melhor pensamento. Improvisavam, desviavam da linha melódica,  e retornavam a ela, em um fraseado rico em alternâncias. Isso dá a batida, a medida. Nesse sentido, a sonoridade do fluxo de consciência beat difere da escrita automática dos surrealistas que, na busca da inconsciência, desprezavam guias, chaves, sentidos.
          No entanto, pode-se dizer que tanto a escrita automática quanto o fluxo de consciência são modos de buscar o sonho, de reconquistar a espontaneidade na escrita. O surrealismo paga seu tributo ao simbolismo francês e o movimento beat ao romantismo anglo-saxão. A música está presente em ambos, mas o universo, a língua faz com que o estilo soe diferente. A escolha do “automático” ao lado da escrita louva a constância da máquina; o “fluxo” da consciência recusa a segmentação.
          Surrealistas, beats, simbolistas e românticos (e mais tarde expressionistas) estão todos jogados em um mesmo movimento de desconstrução para tornar visível o que está oculto, o caótico, que possibilita a reconstrução, e novos conjuntos harmônicos. Assim, a linguagem do escritor musical não se congela. Por mais que um poeta adote formas convencionais de poemas como o soneto, ou um escritor adote um gênero como o policial, ele não se congela numa fórmula, não reduz sua escrita à tradução de um conceito literário. Por isso os surrealistas fugiam do sentido como o diabo foge da cruz. Assim também, escrever de acordo com o fluxo da consciência requer um permanente esforço do escritor em direção à experiência, cuidando para que ela não se contente em ser experimentalismo. Por isso também não se pode dizer que o caminho certo para buscar a musicalidade e a espontaneidade seja o da escrita automática ou do fluxo da consciência. Na direção oposta, João Cabral de Mello Neto dizia sempre desprezar a primeira palavra que lhe vinha à cabeça, orientando a sua sonoridade para o minimalismo. Mas não vou continuar não. João Cabral e o minimalismo musical ficam pra depois.

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