9 de julho de 2010

Tela viva

Zeca Carvalho
          Minha fantasia é a fantasia dele. Minha realidade é tornar-me realidade dele.
           Esta é a minha oitava visita e é como a primeira vez. Entro através da porta já semi-aberta e noto que ele está aguardando pacientemente no sofá, fumando um charuto perfumado.
           Retiro sapatos, meias, vestido, cinta e todos os aparatos que me cobrem. Deixo ali em suspenso, véus e enfeites. Finalmente despida me visto de mulher.
           Chego mais perto e noto um pano de cetim ao lado do sofá. Pego e displicentemente jogo ao longo do corpo. Cada gesto é acompanhado por um olhar atento.
           No ambiente escutamos apenas nossa respiração e uma triste melodia ao fundo. Tintas e pincéis espalhados na mesa aguardam o longo ritual.
           Ando em direção ao grande espelho do salão e retiro um a um os grampos que ainda prendem meu pesado cabelo num coque. Ao sentir cair a cabeleira, encontro novamente aquele olhar fixo. Não nos falamos. Sei que em breve fechará os olhos como estivesse em transe; mas também fará uma minuciosa vistoria no meu corpo, sem o menor pudor. Aguardo.  Não há cobiça nem desejo, mas há paixão.
           Ele me chama com as mãos sem emitir um único som e ajeita-me ao pé do criado-mudo. O pano que cobre parte do meu corpo é retirado num único movimento. Fico imóvel com meus seios à mostra absorvendo a respiração alheia. Ali ao meu lado, ele toca levemente nos meus ombros, coxas, ventre, face, sempre a procura da melhor posição.
          Torno-me um desafio a ser admirado e perpetuado através da perfeição de cada curva, linha e traço, dele. Somos um. A fantasia dele é minha fantasia que se completam através dos pincéis.  E ficamos ali, horas e horas exercitando nosso poder de contemplação. Imóvel e obediente, acompanho a dança dos pincéis que preenchem a tela e que aos poucos me revelam. Despindo-me, ele me veste em cores.
           Finalmente, com o cair da tarde, o som da rua ultrapassa a janela e faz um coro surdo com os pedidos de nossos corpos já cansados. Ouve-se em seguida a badalada dos sinos anunciando
a missa das seis. Instantaneamente pincéis são jogados na água e como desperta de um longo sono, ergo rapidamente o pano de cetim caído aos meus pés e cubro-me inteira. Ligeira e casta sigo para o canto da sala onde o enorme biombo de madeira escura separa os dois mundos. Coloco de volta a apertada cinta, a anágua, as longas meias finas e o vestido de veludo azul. Os cabelos são presos novamente.
           Já na saída, em frente ao espelho, deparo com o olhar dele que, com o flagrante, abaixa a cabeça timidamente.
           Busco o chapéu pendurado junto a porta e após pegar o pequeno envelope pardo no aparador de madeira, inclino ligeiramente o corpo em sinal de despedida. O aceno é retribuído em igual cortesia.
           Ganho a rua sem pressa e sem culpa.  Sem fantasia, sigo minha realidade. No pátio da igreja, cumprimento outras senhoras.

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