31 de julho de 2010

Última homenagem

Arlette Santos
          Comecei o dia de hoje da forma habitual. Lembrei-me do Chico Buarque: Todo dia ela faz tudo sempre igual... Como não tinha nada programado, pensei em adiantar minhas tarefas para o curso da Estação das Letras. Faltava-me, porém, inspiração.
          Fiz uma pausa para descansar, e liguei para a casa de minhas irmãs: quem atendeu foi Ednéa, que parecia ter algo a me dizer e não sabia como fazê-lo. Finalmente, indagou: “Já leu algum jornal hoje?” “Não”, respondi. “Na parte do obituário está a comunicação da missa de sétimo dia pelo falecimento do João Aragão”, disse-me ela.
          Embora a notícia não me tenha pego totalmente de surpresa, visto que já soubesse de seu grave estado de saúde, emoções e lembranças afloraram naquele momento. Resolvi passar algumas delas para o papel, tentando então criar algo em forma de texto para homenageá-lo.
          Falando assim em falecimento, vocês poderão pensar: e daí? Todo dia morrem Manoéis, Marias: faz parte do dia a dia. Só que para nós da família Ferreira, este João era uma pessoa muito especial.
          Nos anos quarenta, meus pais – descendentes de portugueses e nascidos em Petrópolis – resolveram vir para o Rio na esperança de “dias melhores”. Os pais do João Aragão, o Sr. Aragão – dentista – e D. Vitalina – professora – ambos nordestinos, não sei por quais motivos, fizeram o mesmo. Nossas famílias se tornaram amigas. Morávamos na Rua Miguel Rangel, em Cascadura. Não havia nenhum comércio no local, apenas casas, sendo a maioria bem simples. O número de crianças e jovens era bem grande. Fizemos muitas amizades. A vida era mais tranqüila: jogávamos vôlei no meio da rua, dançávamos ora em casa de um, ora em casa de outro. Clube, nem pensar. Reuníamo-nos cada hora em casa de alguém do grupo, porém onde mais nos encontrávamos era na casa do Sr. Ferreira, meu pai, e na do Dr. Aragão.
          O tempo foi passando. Naquela época, não havia assistência médica da Previdência Social e, mesmo que houvesse, nos moldes em que posteriormente foi criada, não poderíamos dela usufruir porque meu pai não exercia atividade com carteira assinada. Ainda estudante de Medicina, o João nos orientava como se fosse um médico de família. Quantas vezes nos tirou do sufoco! Para o meu pai, ele era uma das pessoas em quem mais se poderia confiar, e não apenas para assuntos de saúde.
          Lembro-me quando já na década de cinqüenta, ele já formado em Medicina, fez concurso para a Marinha. Naquela ocasião eu fazia o curso de Assistente Social na Escola de Serviço Social do Estado do Rio de Janeiro, na época localizada no Castelo. Enfrentava condução precária. Havia lotações de vinte lugares, e eu e outras pessoas amigas ou conhecidas sofríamos na fila por cerca de uma hora. Geralmente aparecia o João, nosso salvador: quando se aproximava do ponto do lotação diminuía a marcha, e os caronas – eu, Neusa, Luiz e algum outro conhecido – entrávamos no velho Citröen, às vezes como “sardinhas em lata”, e na maior alegria nem víamos o tempo passar, chegando logo, logo ao Centro da Cidade.
          E a vida seguiu seu rumo: João fez sua carreira na Marinha, chegando a Vice-Almirante. Foi diretor do Hospital Marcílio Dias. Quando meu marido, ex-combatente, resolveu requerer a pensão militar a que tinha direito, foi ele que, mais uma vez, nos encaminhou a quem pudesse nos orientar.
          Tendo completado setenta e nove anos recentemente, a perda de um amigo dos velhos tempos parece encerrar um capítulo de nossa vida. Ela, porém, continua, e devemos vivê-la intensamente.

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