27 de agosto de 2010

O tempo de comer um pavezinho de limão

Daniele Alves
          Elas entraram no café meio desencontradas. Uma muito afoita para comer algo que não dava para saber ainda o que era, e a outra sem muita disposição e boa vontade para estar ali. A morena fincou-se no balcão que para sua sorte estava descongestionado naquele momento, embora fosse hora de grande movimento no café. A negra que não ia comer nada, começou a andar pelo espaço entre as mesas e a parede dos fundos do café. Não queria contato com ninguém. E não porque fosse anti-social. Esperava a morena, que não se decidia quanto ao que ia pedir. A negra até que tentou ajudá-la com sugestões, que não foram consideradas.
           Finalmente sentadas, a morena comia alucinadamente uma sobremesa guarnecida em  um pequeno copo plástico transparente e duro, sobremesa que ia sendo desmanchada na boca daquela senhora de uns sessenta anos. A negra devia ter mas ou menos essa idade também, só que aparentava menos. Estava muito mal acomodada, com as pernas dispostas para um lado, e o tronco voltado para um outro. Suas costas nem tocavam o encosto da cadeira. Tinha uma mão na quina da mesa, a outra no queixo e uma expressão de tédio interminável. À sua frente, a outra a dilacerar o doce, esfomeada, se lambuzando toda feito criança pequena.
          Meio fatigada, ela assistia à morena em ação e lhe respondia com gestos de descaso acompanhados de muxoxos.  Às vezes olhava em volta como a pensar que aquele não era seu lugar. Olhava e logo baixava os olhos com receio de encontrar algum outro olhar perdido. Olhava tudo com diligência, como quem sabe nos mínimos detalhes o que vai dar certo e errado mas tem de ficar em silêncio. Quando a outra acabou de lanchar e resolveu ir embora, a negra foi na frente, os peitos, bem postos para a idade que tinha, sob uma blusa laranja, a cabeça levantada de quem sabe entrar, permanecer e sair dos lugares que não são seus, aliviada por  finalmente não ter mais de estar ali, onde não fazia nada a não ser acompanhar a morena que parecia ter mais posses do que ela,  mas que em matéria de bons modos a envergonhava.
          Enquanto saía, a negra ia percorrendo o café, agora com certa folga no olhar, como quem tivesse cumprido seu dever ou seu pequeno sacrifício com a máxima dignidade possível. Despedia-se do momentâneo tédio e impaciência. Mesmo assim, essa mulher  tinha com certeza desfrutado melhor daquela passagem ali do que a morena. Mesmo não tendo degustado a sobremesa menos arriscada de se saborear naquele café. Sobremesa que sempre estava do mesmo jeito, nem mais nem menos gostosa: um pavezinho de limão. 
***
Cena do filme "la grande bouffe" (A comilança), Marco Ferreri, 1973.

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