7 de agosto de 2010

Quarto 224

Ruth Lifschits
          Entramos. Minha mãe numa cadeira de rodas empurrada por mim. Uma primeira vez para nós duas.
          O hospital é nosso conhecido de internações anteriores.  
          Quarto amplo e claro com varanda, duas camas e uma poltrona reclinável entre as mesmas. Na parede oposta e de frente para a poltrona uma pequena TV pendurada do teto alardeia inutilidades. Uma senhora alourada mantém junto a si os controles da TV e do ar-condicionado, dois celulares e o telefone do quarto – todos alinhados sobre a cama mais próxima da entrada. Muito à vontade na poltrona, os pés disformes apoiados sobre uma banqueta baixa, nos recebe com uma saraivada de orientações: tem um armário ali para as roupas, eu usei a porta da esquerda, a outra está livre, tem geladeira com água e sempre trazem mais, o pessoal é ótimo e o posto de enfermeiras fica bem aqui ao lado. E segue disparando informações sobre o hospital, médicos, procedimentos, atendentes.
          A porta se abre e entra a médica de plantão. Ao vê-la, a senhora se torna sorrisos e cumprimentos. A doutora se detém, a senhora ainda por aqui?! Não fiz meu cat, estou com pneumonia, a cirurgia foi desmarcada. Há quantos dias está internada? Um mês, estou recebendo minha vigésima companheira de quarto. A alegria daquela senhora destoa de tudo.   
          A médica volta-lhe as costas e se ocupa de minha mãe colocando-a na cama para ser examinada.   Posso ouvir os pensamentos de mamãe: sou viúva de Brigadeiro, tenho direito a quarto só para mim, com essa desconhecida aqui não vai ter lugar para minha filha. Hospital cheio, ala em reformas, situação de exceção. Explicação dada, a médica sai.
          A companheira de quarto volta à carga: se não gostarem da comida é só falar que o pessoal troca. Fazem tudo que eu peço. O enfermeiro da noite é maravilhoso, um craque para pegar veia.  A impaciência fala alto e minha mãe esbraveja de sua cama: essa TV altíssima, estou me sentindo mal, quero silêncio e ponha o telefone de volta na mesa, também quero usar.  
         TV desligada, telefone na mesa entre as camas e os controles remotos também. O constrangimento toma conta de tudo. Minha mãe ameaça lançar mais queixumes. Entre dentes digo que está sendo grosseira, que se controle. 
          E vem a nutricionista, a encarregada dos lençóis e toalhas, a enfermeira de dia, as auxiliares de enfermagem com os primeiros cuidados e coletas de material para exames laboratoriais.
          A senhora permanece enfiada na poltrona, muda. Puxo conversa, generalidades.  A deixa é logo aproveitada. Ela já havia passado três meses no outro hospital militar, mas esse é muito melhor. Diabética, hipertensa, com problemas respiratórios por ter fumado muito na juventude, precisa melhorar para ser operada. Só terá alta quando estiver estável. Mas não tem medo de infecção hospitalar, não é melhor ir para casa e voltar no dia do cateterismo?, minha mãe pergunta. Ela ri, isso é bobagem. Mas a senhora não sente falta de sua casa, tanto tempo longe da família?, arrisco. Ela me encara: sou viúva de sargento, duas filhas e seis netos moram comigo numa casa de quarto e sala. Pago duzentos e cinqüenta reais de aluguel, a luz é  gato, a água de poço. É na comunidade. Sem tirar os olhos de mim, faz uma pausa e repete: comunidade - entende? Favela.  Minha mãe tosse e se mexe na cama. Penso em me virar e lhe dar atenção  mas a senhora continua:  na favela de Manguinhos aqui perto. E fica me olhando, saboreando a sensação de causar choque e espanto. Seus olhos azuis se apertam e descontraem no mesmo ritmo da pulsação de suas narinas sugando ar. Aqui tenho comida boa o dia inteiro, quarto com TV a cabo e ar-condicionado, telefone e geladeira só para mim. Lá em casa só problemas, barulho, uma TV pra todo mundo e um calorão o tempo todo.
          Bandejas com almoço entram quarto adentro. Deixo as duas se alimentando e vou almoçar na Cantina dos Oficiais. A  alta patente de meu pai me reserva esse direito.
          Sem a menor vontade de enfrentar o quarto 224, volto umas duas horas depois.
          Minha mãe, sentada na cama, conversa com a senhora da comunidade ainda na poltrona. Conta fatos e feitos de sua vida, enchendo a boca com os dezesseis netos - nove de um dos seus quatro filhos - cinco bisnetos,  as aulas de canto e seu repertório em inglês, francês, espanhol e italiano, e louva  o fato de morar sozinha aos 87 anos e de não ter filho nenhum governando sua vida.
          O duelo verbal evolui rapidamente, notas de vida se espalhando pelo quarto, até minha mãe sugerir que se ligue a TV para o bom programa que começará em minutos.
          Aproveito para me despedir prometendo voltar no dia seguinte.
          Ao fechar a porta, a voz de mamãe me chega bem firme: nada de senhora, me chame de Lúcia.
          Ah, eu sou Luísa.

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