3 de setembro de 2010

Falsa terceira pessoa e mudança do foco narrativo

Autran Dourado em Poética de romance: matéria de carpintaria
           Falsa terceira pessoa, porque terceira pessoa mesmo, genuína, obriga a onisciência, o saber de Deus, para quem nada é obscuro. Em Kafka, quando a história está na primeira pessoa, o que não é comum em sua obra, reparem como parece que ele usou de recurso inverso, escreveu pensando em termos de terceira, pois o autor está sempre de fora, onisciente. Porque a primeira pessoa é unívoca, ninguém, a não ser o esquizofrênico, se vê de fora; a consciência, o saber humano, ao contrário da onisciência, é cerrada.
          Experimentem uma outra leitura de Kafka e compreenderão o que quero dizer. Tentem uma leitura de “O processo” ou da “Metamorfose” transpondo mentalmente o texto para a primeira pessoa, e vejam como todo o mistério e beleza, todo o absurdo e estranheza, a metafísica e a presença/ausência da Graça, desaparecem. Troquem Gregório Samsa por eu, mudem a desinência do verbo, e vejam como a metade, pelo menos, da maravilha que é a frase inicial com que Kafka abre a Metamorfose, desaparece.
         Venho usando desses recursos conscientemente. Em certos casos, [...] passo uma história escrita originariamente na terceira pessoa para a primeira, e o efeito é sempre surpreendente, quando não desconcertante, para mim.
         Vejam: a técnica é tão interessante que não é uma simples mudança de verbo o que acontece é muito mais. Ao contrario da adjetivo, o verbo é o que há de mais importante na gramática, na linguagem, na narração. Sem o adjetivo não há cor, sem verbo não há movimento na narrativa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário