4 de outubro de 2010

A escola de redação E.U.A - parte final

Elizabeth Bishop "Esforços do afeto", trad. Paulo Henriques Brito
          Muitos de meus patéticos candidatos davam a impressão de jamais ter lido o que quer que fosse, com a possível exceção de um único relato memorável, do gênero "Confissões verídicas". A discrepância que havia entre os textos estranhos, sem vida, desconjuntados que me enviavam e as coisas que liam em letra de fôrma simplesmente não lhes saltava à vista. Ou talvez eles imaginassem que o senhor Margolies brandiria sua vara de condão, e então os pequenos montes de melancólicos ossos verbais, como ossos de galinha ou espinhas de peixe, ganhariam carne e vida, e se transformariam em contos e romances encorpados, emocionantes, apaixonantes. Sem dúvida, haveria outros motivos, mais profundos, que os levavam a matricular-se no "curso", enviar suas "lições" e pagar a quantia absurda de quarenta dólares. Mas nunca consegui me convencer de que meus alunos realmente acreditavam que um dia iriam saber escrever, ou que teriam de se esforçar muito para conseguir tal coisa. Era como comprar um bilhete de loteria. Afinal, qualquer um poderia ganhar o prêmio, e todo mundo sabe que nessas coisas sempre tem marmelada.
          Todos esses exemplos de literatura "primitiva" - o temo me parece apropriado - tinham uma característica em comum que os diferenciava da pintura primitiva: o desmazelo e a afobação. Enquanto o pintor primitivo é capaz de passar meses ou anos, se necessário, reproduzindo todas as folhas de relva de um gramado ou criando muros de tijolo em baixo-relevo, o escritor primitivo parece ter pressas em acabar logo com aquilo. Outra característica era a ausência quase completa de detalhes. O pintor primitivo ama os detalhes, e os elabora e enfatiza em detrimento do todo. Mas quando o escritor primitivo utiliza detalhes, estes são muitas vezes absurdamente inadequados, e revelam muita coisa a respeito do autor sem dizer nada de relevante sobre o assunto em questão. Talvez isso prove que têm razão os escritores profissionais que com que freqüência se queixam de que pintar é mais divertido que escrever. Talvez as mesmas mulheres que apresentam míseros resumos de narrativas sem diálogos e sem nenhuma descrição de personagens e lugares não hesitassem em passar uma tarde inteira enfeitando um bolo de aniversário com glacê de cores diferentes. Mas a temática era igualmente banal nas pinturas e nos textos. Havia também nessa literatura a mesma tendência que há na pintura primitiva de fazer com que tudo faça sentido, ou adquira um valor moral para o mundo, atribuindo-lhe uma "moral" ou interpretação alegórica grandiosa, ainda que desajeitada. Era como se meus alunos dissessem: "Nossas experiências são verídicas e verdadeiras, e foi com base nelas que tiramos nossas conclusões inimitáveis e nobres. Como nossos sentimentos são tão elevados, quem ousaria negar-nos nosso direito à Fama?"
          O que poderia eu dizer a eles? A julgar pelo que me escreviam, estava claro que meus alunos mal podiam esperar a chegada de minha próxima análise. Talvez nutrissem a esperança, a cada vez, de que o senhor Margolies lhes dissesse que havia encontrado uma revista que publicaria sua lição e que o cheque seguia em anexo. Todos estavam ansiosos, embora não fizessem muito esforço; ou pelo menos achavam-se na obrigação de fingir-se ansiosos. Um homem escreveu: "Esta noite mal dormi, aguardando a sua resposta". Pediam desculpas pela demora, pela má ortografia, pelas canetas ou lápis que usavam (pedíamos que escrevessem a tinta, mas muitos não o faziam). Um rapaz desculpou-se pela letra feia, dizendo: "Estou escrevendo isto no metrô", o que talvez fosse verdade. Alguns se referiam a suas lições como "dever de casa", e dirigiam-se ao senhor Margolies como "querido professor". Uma mulher enfeitava suas lições com selos de Natal. Para minha surpresa, houve dois ou três alunos que escreveram obscenidades do tipo que um homem conta a outro, ou relataram piadas cabeludas velhíssimas.
          Comecei a copiar trechos das cartas e contos que enviavam e levá-los para casa. Um zelador de Kansas City queria aprender a escrever para publicar "um livro sobre como ensinar as crianças a serem bons radicais, do tipo de George Washington ou do tipo Jesus Cristo". Uma mulher contou-me que sua mãe idosa de tal modo aprovara seu propósito de aprender a escrever que lhe dera os quarenta dólares e lhe cedera "o nome dela para eu assinar trabalhos". A filha chamava-se Emma, a mãe Katerina. Eu poderia, por favor, doravante dirigir-me à filha como Katerina?
          Depois da minha "criadora de gado e galinhas", meu favorito era Jimmy O'Shea, de Fall River; idade: setenta anos; profissão: "aposentado". O estilo dele era o que mais se aproximava do primitivo clássico. Suas histórias eram um tanto compridas, e tal como Gertrude Stein ele escrevia à mão, com uma letra esparramada, em pedaços pequenos de papel. Havia elaborado um estilo que lhe permitia preencher exatamente uma página com cada frase. Cada frase - normalmente iniciada por Também ou Sim - começava no alto da página à esquerda  e terminava com um ponto avantajado no canto inferior à direita. A bondade brilhava por trás dessas páginas com pauta azul, como se elas fossem lanternas de papel. Ele caracterizava tudo que aparecia suas narrativas simples com três, quatro, até cinco adjetivos, e depois os repetia, como Homero, cada vez que o substantivo reaparecia. Foi o senhor O'Shea que me escreveu uma carta que exprimiu o sentimento comum de que o tempo está passando e sendo desperdiçado, deslumbramento e inveja, e em parte ambição sincera: 
          Eu não andava muito bem dos dentes, e tive que arrancar três dos grandes, porque eles me  faziam ficar nervoso e doente às vezes, e foi por isso que eu não mandei nenhuma lição. Estou pensando em saber escrever igual a todos os Escritores, porque acho que isso é o que pretendo mais que qualquer outro tipo de trabalho. Senhor Margolies, fico pensando como esses Escritores escrevem histórias grandes com 60 000 ou 100 000 palavras nessas Revistas, onde é que eles encontram imaginação e material para isso? Sei que ha um grande campo nessa arte.

          Aguentei o curso o máximo que foi possível, o que não foi muito tempo, e na mesma semana em que recebi essa carta do senhor O'Shea pedi demissão. O senhor Black implorou-me para ue fixasse, logo agora que eu estava começando a pegar o jeito da coisa, estava produzindo cada vez mais análises por dia, e me ofereceu mais dois dólares e meio por semana. Também Rachel pareceu ficar triste com a notícia. Fomos almoçar juntas pela última vez, numa outra lanchonete, onde havia um bar, e - cada uma pagando a sua conta - tomamos um coquetel antes do almoço. Quando eu estava retirando minhas coisas da mesa, ela me deu um presente, uma brochura estranha que havia acabado de ler, obra de um chinês, escrita num estilo semelhante ao de nossos alunos. O livro relatava suas experiências como trabalhador escravo em fazendas nos Estados Unidos e em canaviais em Cuba. O relato parecia verídico, mas não era "realismo", porque o autor usava uma imagística estranha, oriental.
          Cerca de dois anos depois encontrei Rachel no Times Square uma noite, quando eu ia ao teatro. Ela estava como sempre, talvez um pouco mais pesada e um pouco menos mal vestida. Perguntei-lhe se continuava trabalhando na Escola de Redação E.U.A., e como estava o senhor Black. O senhor Black, respondeu-me ela com perfeita naturalidade, estava preso, pela segunda ou terceira vez, por fazer uso indevido do correio. A Escola de Redação E.U.A. fora invadida pela polícia pouco depois de eu pedir demissão, e todas as lições, todas as cartas sinceras e confiantes de meus pobres alunos foram confiscadas. Disse ela: "Eu não lhe contei quando você estava lá, mas era por isso que a gente estava revendo todo o material. A Escola de Redação E.U.A. era um nome novo; até mais ou menos um mês antes de você entrar o nome era diferente. O Black pagou uma multa alta daquela vez, e estávamos começando tudo de novo".
          Perguntei-lhe o que ela estava fazendo agora, mas Rachel não me disse. Eu estava vestida para ir ao teatro, e ela me olhou dos pés à cabeça com desprezo - pelo que me pareceu - mas com tolerância, como se estivesse pensando: Mas que bela anarquista! Então o senhor Hearn e o senhor Margolies trocaram um aperto de mãos e se despediram para sempre.
Sobre Elizabeth Bishop e sua relação com o Brasil, onde morou muitos anos, Marta Góes - vizinha da poeta durante a infância, quando ambas moravam em Petrópolis - escreveu este monólogo.
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