28 de outubro de 2010

Que segredos tem Clarice?

Do livro "Espelho" de Susy Lee
          Solilóquio
          Escrevo como se estivesse dormindo e sonhando: as frases desconexas como no sonho. É difícil, estando acordado, sonhar livremente nos meus remotos mistérios. Há uma coerência – mas somente nas profundezas. Para quem está à tona e sem sonhar, as frases nada significam. Se bem que embora acordados alguns saibam que se vive em sonho na vida real. O que é a vida real? Os fatos? Não, a vida real só é atingida pelo que há de sonho na vida real.
          Sonhar não é ilusão. Mas é o ato que uma pessoa faz sozinha.
          Eu – eu quero quebrar os limites da raça humana e tornar-me livre a ponto de grito selvagem ou “divino” ... A vida real é um sonho, só que de olhos abertos (que vêem tudo distorcido). A vida real entra em nós em câmera lenta, inclusive o raciocínio o mais rigoroso – é sonho. A consciência só me serve para eu saber que vivi às apalpadelas e na ilogicidade (apenas aparente) do sonho. O sonho dos acordados é matéria real. Nós somos tão ilógicos sonhadores que contamos com o futuro. Eu baseio minha vida no sonho-acordado ... Mas nos sonhos acordados há uma ligeireza inconseqüente de riacho borbulhante e coerente. O estado de ser. (Um Sopro de vida)

          Fluxo de consciência
          As uvas, um cacho de uvas redondas e polpudas e líquidas e falsamente transparentes porque dão a impressão de serem transparentes, mas não se vê o lado de lá tu és inteiramente opaco embora dês a impressão de transparência diabo pro inferno que tenho a ver com a opacidade das coisas e a tua o touro da fazenda é grosso as vacas cheirando a campos inéditos o campo fica ao ar livre entre o campo e o céu eu respiro o ar que voa voa leve quando começa a brisar meu rosto nu e desgovernado louco quando as janelas batem e batem as ventanias gosto tanto de ser brisada como de me expor à ventania que bate as portas e janelas do casarão inteiro. (Um Sopro de vida)

          Busca do grau zero da linguagem
          Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. E então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que estava ali, no entanto. No entanto, ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso.
          Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros quiseram ter o que já tinham. (...) Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem distraídos. (“Fundo de gaveta”, em Legião Estrangeira)

          Repetição
          Pois ele sabia que eu não saberia ver o que visse: a explicação de um enigma é a repetição de um enigma. O que és? e a resposta é: És.  O que existes? e a resposta é: o que existes. Eu tinha a capacidade de pergunta mas não a de ouvir a resposta. (Paixão segundo GH)

          Elementos metafóricos contundentes
          Pega uma espiga delgada de trigo de ouro, e põe entre as gengivas sem dentes e se afasta de gatinhas com os olhos abertos. Olhos imóveis como o nariz. É preciso mover toda a cabeça sem ossos para fitar um objeto. Mas que objeto? (Água viva)

          Oxímoros (uma variante da antítese, resultado de uma contradição entre termos próximos) desajustados
          Juro, acredita em mim – a sala de visitas estava escura – mas a música chamou para o centro o centro da sala – a sala se escureceu toda dentro da escuridão – eu estava nas trevas – senti que por mais escura a sala era clara – agasalhei-me no medo – como já me agasalhei de ti em ti mesmo – que foi que encontrei? – nada senão que a sala escura enchia-se da claridade que se adivinha no mais escuro – e que eu tremia no centro dessa difícil luz – acredita em mim embora eu não possa explicar – houve alguma coisa perfeita e graciosa – como se eu nunca tivesse visto uma flor – ou como se eu fosse a flor – e houvesse uma abelha – uma abelha gelada de pavor – diante da irrespirável graça dessa luz das trevas que é uma flor – e a flor estava gelada de pavor diante da abelha que era muito doce – acredita em mim que também não creio – que também não sei o que poderia uma abelha viva de pavor querer na escura vida de uma flor – mas crê em mim – a sala estava cheia de um sorriso penetrante – um rito fatal se cumpria – e o que se chama de pavor não é pavor – é a brancura subindo das trevas – não ficou nenhuma prova – nada te posso garantir – eu sou a única prova de mim. (“Fundo de gaveta” – LE)

          Símiles conectados em estranhamento
          A morte é um encontro consigo. Deitada, a morta era tão grande como um cavalo morto. (A hora da estrela)

          Letra desarticuladora de si e do outro
          Eu escrevo por intermédio de palavras que ocultam outras – as verdadeiras. É que as verdadeiras não podem ser denominadas. Mesmo que eu não saiba quais são as “verdadeiras palavras”, eu estou sempre aludindo a elas. (Um sopro de vida)

          Palavra: encontro do ato e vivenciamento desse ato
          De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.
          Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo... – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo... – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. (LE)
Confira ROSSONI, Igor. Zen e a poética auto-reflexiva de Clarice Lispector: uma literatura de vida e como vida. SP: UNESP, 2002 ou no site: http://cultvox.uol.com.br/ListaLivros.asp?IDCategoria=56&Tipo=Categoria

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