2 de novembro de 2010

Invocações (memórias e ficção) (trecho)

Sergio Sant'Anna em "O vôo da madrugada"
            Quantas vezes já não desesperei de mim, diante da impossibilidade de escrever não uma grande obra e sim um simples conto, mas que aplacasse, ainda que por poucos dias, uma ânsia de realização e de beleza? Quantas vezes já não me desesperei diante dessa impossibilidade? Gemi, solitário, dentro de um quarto, abafei gritos, quis bater a cabeça na parede, cheguei a desejar, por causa disso, a morte? E me pergunto: quantos artistas, ou candidatos a serem-no, já não se mataram ao debater-se contra seus limites? Mas quantas outras pessoas de reconhecido talento, ou mesmo de gênio, também já não se mataram por não suportar o tormento e a angústia encravados em seus cérebros? Uma lista tão considerável que nem vale a pena enumerar aqui. Isso para não falar naqueles outros, escritores ou artistas, que terminaram suas vidas em hospícios, ou imersos no alcoolismo, às vezes caído na sarjeta, como se houvesse uma maldição a abater-se sobre eles. Mas quantos malditos no mundo não tiveram nem o consolo da arte?
            Voltando aos que desesperaram delas, a arte ou a literatura, ou mesmo aos que se torturaram de por elas afortunados, qantos já não se colocaram a questão de invocar o Demo para satisfazer seus anseios? para além das histórias em que o próprio Demo toma parte, como o Fausto, de Goethe; o Doutor Fausto, de Thomas Mann; e, mais ambiguamente, o Grande sertão, veredas, de Guimarães Rosa, quem poderá garantir que uma ou outra obra de gênio não foi gerada sob inspiração satânica? Isso, ainda que Satã não passe da agregação de certas forças psíquicas. Mas não seria absurdo supor - apenas supor - que Goethe, Mann, ou mesmo o metafísico Rosa, em alguns momentos da escrita de suas obras, tenham bebido nessa fonte obscura da psique, por que não?
             Na verdade, nunca deixou de pairar sobre o mundo a grande pergunta: existe o Diabo? Talvez se possa dizer que existirá ele se existir Deus, e como contrapartida Dele. Ou não. Mas nem por todo êxito de uma obra invocaria eu Satã. Pois, ainda que houvesse apenas uma possibilidade em milhões de que ele existisse e pudesse apossar-se da alma de alguém em troca de uma grande fortuna artística ou de outra ordem, eu não me arriscaria a invocá-lo. Até porque ficaria muito, muito temeroso se por acaso uma obra começasse a sair-se muito bem e houvesse eu me valido de tal invocação. Mesmo que a obra não passasse de um simples conto, e o contista de um pequeníssimo Fausto.
             O que não quer dizer que eu, este contista, quando em desespero, não possa apelar, seja isso inútil ou até ridículo, para outras invocações, como por exemplo minha mãe morta. Sim, minha mãe, porque jamais, no tempo em que convivi com ela, escutei-a admitir uma dúvida que fosse sobre a existência do Deus dos cristãos, ao Qual se converteu, segundo ela por ter recebido Sua graça, e a Quem seguia com devoção e até fanatismo. Não a vi revoltar-se ou desesperar-se nem mesmo diante das verdadeiras torturas físicas pelas quais passou em longas enfermidades, que lhe custaram, entre muitos outros males, uma perna, que foi forçada a amputar. Rezava muito e diariamente, e o fazia também pelos filhos, dando a entender que velaria por eles depois que já não estivesse mais neste mundo. Rezava ainda em intenção da alam de seus parentes mortos e os invocava: seu adorado pai, que no entanto fora ateu e anticlerical; seus irmãos, falecidos todos antes dela; e a preta velha, Lindolfa, a Bó, que, como uma segunda mãe, fora importantíssima na sua criação e na de seus irmãos. A se confirmarem então os ensinamentos de sua fé, minha mãe seria sobrevivente à morte, transformada em alguma outra espécie de ser, e talvez em condições de ouvir o apelo de que, o leitor pode ter certeza, me vali agora mesmo, enquanto rascunhava este texto:
            "Mãe, esteja onde estiver, acuda este seu filho e faça-o escrever um conto bonito que transforme a sua solidão e angústia em amor e alegria".
             A existência de um ser para além da sua morte é algo em que se pode acreditar ou não - e não posso dizer que creio, pois nada sei -, mas que a idéia e o texto que me vieram imediatamente à cabeça - independentemente do esforço que me custou a sua escrita e de seu modesto valor - sofreram em tudo a interferência da própria e estão com ela intimamente relacionados, disso não há a menor dúvida, como se verá.
            Pois surgiu nítida em mim a lembrança do menino que fui, com seus nove, dez anos, na véspera de um Natal, quando um peru ia ser morto no quintal de nossa pequena casa em Botafogo, isso numa época bem anterior à do surgimento das carnes industrializadas. E preferia-se sacrificar-se a ave em casa, menos de vinte e quatro horas antes do almoço de Natal, a fim de se preparar bem fresca a sua carne. Antes de ser abatido, ficava ali o bicho no quintal, marrado por uma das pernas num arbusto, quanto menos tempo melhor, pois nós, as crianças, não podíamos nem nos permitir gostar dele, porque condenado à morte por nossos próprios pais. mas não resistíamos à curiosidade e íamos várias vezes lá, olhar, simultaneamente fascinados e penalizados, aquela ave esdrúxula. A sentença de morte conferia-lhe uma certa solenidade e tragicidade e, em nosso íntimo, não havia como não nos perguntarmos que direito tínhamos sobre a vida dos animais. O que não nos impedia de atormentar o pobre bicho, cutucando-o com um cabo de vassoura e atirando-lhe pedrinhas. Ao mesmo tempo, diante de seu olhar de medo e raiva, fixo em nós, sentíamos pena dele também pelo que nós lhe fazíamos. E fico aqui pensando que milhões de perus são mortos pelo mundo afora na ocasião do Natal, supostamente para isso. E penso, também, que apesar de serem milhões, cada peru é um peru em especial; este, de que aqui se fala, especialíssimo, porque preservado numa memória e num texto cinquenta anos depois de sua morte, quase como um personagem de conto, porém real, pois a vida o habitou por um breve tempo.
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