19 de novembro de 2010

Vocabulário de afetos I

A sedução das esdrúxulas
Albano Martins (poeta)
Paixão – A palavra significa sofrimento, mas o sofrimento por amor é o único humanamente tolerável e, mais do que isso, apetível. Diria mais: a paixão é a única forma digna de estar na vida e de resistir aos assaltos diários da morte.
Água – A da fonte e a dos riachos da montanha. Limpa, límpida, era assim que eu queria as relações humanas, habitualmente tão turvas e envenenadas.
Lágrima – Sempre me seduziram as palavras esdrúxulas. Esta, pela sua particular sonoridade, que lhe advém da contiguidade da vogal átona i, fechada, com a tônica a, aberta, e da acumulação de consoantes líquidas ou molhadas. Lágrima é, com efeito, uma palavra molhada. E salgada, como a água do mar.
Fogo – O elemento primordial, como queria Heráclito. Sem ele, Eros seria apenas um deus menor ou uma figura retórica.
Verão – A casa do fogo. É lá também que moram os frutos, as hidrângeas e as papoilas.
Perfume – É uma essência, e é a essência que a minha poesia persegue. Rima, além disso, com lume, que é o outro nome do fogo.
Vermelho – A primeira cor. Digo: a cor do fogo e do sangue. A cor do génesis, auroral.
Magnólia – A flor esdrúxula; a flor sem folhas e sem fruto; a flor, simplesmente.
Acaso – Tudo é obra sua. Ele é, por isso, o único deus ominipotente e... omnipresente.
Absurdo – O irmão gémeo do acaso, e tão poderoso e presente como ele no universo do nosso quotidiano.
Jornal das Letras, Artes e Idéias, Ano XXIV / n.889 (27 de outubro a 9 de novembro 2004), Portugal.
O livro comemora os 60 anos de carreira do escritor.

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