18 de fevereiro de 2011

Cenário

          A cena e o cenário
Raimundo Carrero em O segredo da ficção
         Cena é ação de conflito, decisiva para a compreensão da história, representativa da movimentação dos personagens, mesmo quando muda. Silenciosa. Em geral, só há cena com a participação do personagem.
          Cenário é o local, a área ou o registro onde ocorre a cena, sem a participação ativa do personagem. O cenário sem personagem é, no máximo metafórico, registrando o olhar do personagem ou do narrador.
          As pessoas dizem sempre: "Essa foi a cena do crime". Não é verdade. "esse foi - ou é - o cenário do crime." Isso, sim. "Cena" pede personagem ativo. O teatro resolve esse problema com muita facilidade. Vejamos em O casamento suspeitoso, de Ariano Suassuna:

          Uma sala de casarão sertanejo. Portas para quartos e corredor. Uma grande mala ou um guarda-chuva. Estão em cena Cancão, Gaspar - que é gago - e o juiz Nunes.

          Com a maior clareza: o cenário é formado por "uma sala de casarão sertanejo. Portas para quartos e corredor. Uma grande mala ou um guarda-chuva". O autor adverte, logo em seguida, que estão em cena os personagens que vão promover a ação dentro do cenário - "Cancão - que é gago - e o juiz Nunes". A distinção é óbvia.
          Em geral, o cenário é fixo; a cena, dinâmica.

          O silêncio do cenário
          A seguir, um exemplo mais avançado de cenário. Observaremos que no cenário de Hemingway há referência a tropas, mas elas não estão em movimento. Apenas lembram os movimentos. Apenas. Não existe ação plena. Podemos dizer que há aí o cenário da guerra. E não a cena da guerra. Os personagens não interferem na história.

          As tropas de passagem pela estrada erguiam pó e o pó acamava-se sobre as folhas. Também o tronco das árvores vivia empoado. As folhas caíram cedo naquele ano. Víamos as tropas em marcha pela estrada sempre envolvidas numa nuvem de pó; e víamos as folhas caírem ao sopro do vento; e depois que os soldados passavam, a estrada estendia-se deserta e branca, só pintalgada das folhas secas.
          A planície abundava de plantações; muitos pomares, árvores frutíferas, e ao longe as montanhas pardas e descalvadas. A guerra nas montanhas as noites de clarões de artilharia. Clarões que lembravam os relâmpagos do verão, mas em contraste com o frio da noite e nenhum sinal de tempestade. (Adeus às armas)*

* Sem indicação de tradutor.
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          O conto "Cenários", de Sergio Sant'Anna, que abre o livro O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, apresenta uma sucessão de descrições completamente diferentes entre si. O leitor, do momento em que começa a se sentir envolvido e parece já estar no ponto certo para ser flagrado pelo irromper de uma cena de dentro do cenário descrito pelo narrador (sempre em 3a pessoa), recebe um pequeno tapa do autor, que aparece abruptamente para concluir: "não, não é bem isso", exigindo a escrita de um novo início.

          Um fio d'água caindo de um esgoto sobre um córrego da Baixada cheio de bolhas pestilentas, onde um rato passeia sobre um cadáver algemado e degolado e cuja cabeça, com cabelos soltos, lisos e grossos, de índio amestiçado, pertencendo a um desses homens que perderam sua raça e não encontraram outra - e por isso, talvez, buscava a si próprio nos crimes - pende ela do corpo também apenas por um fio, boiando numa correnteza quase imperceptível e à espera de que, com o calor e o roer do rato, possa desprender-se do corpo e descer rolando, vagarosamente, este arremedo de rio, encalhando aqui, soltando-se novamente ali, como a última marca de um homem cuja falta nunca será sentida, devorado até a última migalha pelos vermes e, mais adiante, pelos peixes que resistiram a tanto lixo, mas que persiste, ainda, este homem, como se quisesse fazer valer até o fim sua presença, em desprender do crânio durante as noites de lua em fogo fátuo, diante do qual as pessoas se benzem e fogem espavoridas?
          Não, não é bem isso.
Capa de Paulo Cesar Pereira, edição da Ática, 1982.
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Um cenário pode ter personagens que se movimentam, sem que isto signifique que alguma ação ou cena esteja em curso. Um rio também se movimenta mas pode simplesmente ser parte da paisagem. Um chafariz, o vento, uma pessoa fazendo ginástica, um menino andando no deserto podem ser parte do cenário, assim como alguém pode se tornar mais um móvel ou utensílio da casa. Toda ação deflagra uma mudança, o que dá ensejo ao encadeamento da narração.  A parada repentina do jorro de um chafariz, ou do sopro contínuo do vento,  a ocorrência de uma distensão em uma ginasta, o tropeço de um menino na deserto em uma raiz de um arbusto no meio de um deserto. Mas, parodiando Sant'Anna, talvez seja possível concluir: não, não é bem isso.

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