15 de fevereiro de 2011

A inventada


Mulher-livro, de Salvador Dali (cf. leitoras.sos)




Elias Canetti
          A Inventada não viveu nunca, mas existe e se faz notar. É muito bela, porém de modo diferente para cada espectador. Dela já se deram descrições estáticas. Alguns encomiam os cabelos, outros, os olhos. Mas há divergências quanto à cor, que vai desde um brilhante azul-dourado até o mais intenso preto, e o mesmo se pode dizer dos cabelos.
          A Inventada varia com relação à estatura e tem qualquer peso. Promissores são seus dentes, que de vez em quando põe a descoberto. Os seios ora intumescem ora encolhem. Ou caminha cerimoniosamente, ou permanece deitada. Está nua ou fabulosamente vestida. Somente a respeito de seus calçados foram recolhidas centenas de informações.
          A Inventada é inatingível, a Inventada comunica-se com facilidade. Promete mais do que cumpre mais do que prometeu. Revoluteia, detém-se. Não fala; o que diz é imprescindível. É exigente; apega-se a qualquer um. É pesada como a terra e leve como um sopro.
          Continua duvidoso se a Inventada tem ou não consciência de sua importância. Até neste ponto discordam violentamente os seus adoradores. Como consegue fazer com que todos saibam que é ela? Claro que isso não cria nenhuma dificuldade à Inventada; mas teria sido sempre assim, desde o começo? E quem a inventou, até torná-la inolvidável? Quem divulgou-a através de toda a terra habitada? Quem diviniza e quem vende a preço vil? Quem dispersou-a pelos ermos da lua, ainda antes de içarem uma bandeira em seu solo? E quem envolveu um planeta em densas nuvens, por ter este recebido o nome dela?
          A Inventada abre os olhos e nunca mais os fecha. Nas guerras, pertencem-lhe moribundos de ambos os campos. Em tempos remotos, estalaram guerras por ela. Hoje em dia, tal não acontece. Agora visita os homens na frente de batalha, e sorridente, entrega-lhes o seu retrato.
Do livro Todo-ouvidos – cinqüenta caracteres. Trad. Herbert Caro.

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