17 de fevereiro de 2011

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O Voa-voa 
Elias Canetti
          Em outros tempos, o Voa-voa teria chegado com o vento, mas agora há veículos mais rápidos. Mal aterrisou em Bangkok, já estuda o horário dos aviões para o Rio e faz logo uma reservatio mentalis para Roma. O Voa-voa vive no turbilhão das cidades. Em toda a parte existe algo que possa ser comprado, algo a ser aprendido.
          Ele gosta de viver nos nossos dias; pois como se passava aquilo outrora? Aonde se podia ir? Quão molestas e perigosas não eram as viagens! Atualmente decorrem, sem que se exija o menor esforço. Basta mencionar alguma cidade, para já ter estado lá. Talvez até se renove a visita. Tudo é possível, sempre que o permita o lufa-lufa. Os outros pensam que ele já esteve em todos os lugares do mundo, mas o Voa-voa tem informações melhores. Novos aeroportos estão sendo construídos; novas companhias iniciam suas atividades. Pode ser que anciãos caducos ainda sonhem com serenas viagens marítimas. A estes, almeja boa sorte nas preguiçosas do convés, mas aquilo não lhe serve, visto que sempre tem pressa.
          O Voa-voa tem seu próprio idioma, que consiste em nomes de cidades, unidades monetárias. Quitutes exóticos, vestimentas de terras estranhas, hotéis, praias, templos e boates. Também sabe onde em determinado momento se trava uma guerra, que o possa incomodar. Acontece, no entanto, freqüentemente, que haja nas proximidades um movimento extraordinário, e se a coisa não for excessivamente perigosa, o Voa-voa gosta de acrescentar seu próprio frenesi, encaminhando-se para lá por dois ou três dias, para em seguida, deslocar-se em outra direção, buscando o contrastes de regiões inteiramente pacíficas.
          O Voa-voa não tem preconceitos. Acha que os homens são iguais em toda parte, pois sempre querem comprar algo. Que se trate de roupas ou antigüidades, todos se aglomeram nas lojas. Em qualquer lugar há dinheiro, embora as moedas sejam diferentes; troca-se em toda a parte. Que se lhe mostre um sítio do mundo, onde faltem manicuras e favelas. Se a demora não for demasiada, nada humano lhe fica alheio. Ele demonstra compreensão e interesse por tudo. Um Voa-voa ao qual permitam que aja à sua vontade, não guarda rancor a ninguém. Seria bom para o mundo, se todos fossem como ele. Um dia serão, mas melhor é viver, enquanto não forem, já que a azáfama geral certamente não causará nenhum pesar. Assim sendo, o Voa-voa dá um ligeiro suspiro, não pensa mais nisso e salta no primeiro avião que se ofereça.

***

A Prima-lunar
          Através de um sonho, a Prima-lunar ficou sabendo que tem parentes na lua. Sempre suspeitara disso, pois jamais esteve em outros países, sem topar neles com pessoas que não lhe parecessem conhecidas ou familiares. Não eram amigas. Nunca as vira em outra ocasião. Tampouco entendia seu idioma. Mas havia algo no aspecto desses vultos: a inclinação da cabeça, a redondez das unhas, a posição expectante dos pés. Sentia-se uma atração recíproca, já antes que tais particularidades se tornassem perceptíveis. Na movimentada praça principal de uma cidade exótica, subitamente a gente defrontava com um homem diferente de todos os demais. Ele se acercava com tamanha segurança que dava a impressão de terem se separado apenas na véspera. Seu olhar fixava-se em nós de modo inconfundível, demonstrando que nós, em meio a toda a multidão, também havíamos chamado sua atenção. Na verdade, erros podem ocorrer às vezes. Não é, no entanto, provável que duas criaturas totalmente estranhas, que nunca se avistaram, possam incorrer ao mesmo tempo no mesmíssimo erro. Ademais, em seguida constatar-se-á com toda facilidade que não houve nenhuma intenção calculista, pois se o inopinadamente aparecido não quer nada especial e tão-somente cede a seu mero assombro, se então verificamos que ele se ente exatamente o mesmo que nós, deve haver algum significado no incidente.
          A Prima-lunar não larga nenhum desses inopinadamente avistados, sejam homens ou mulheres. Prefere essas últimas porque com elas é mais fácil evitar quiprocós suscetíveis de provocar decepções. Após algumas tentativas iniciais, descobre-se uma terceira língua que sirva para entendermo-nos. Sentamo-nos juntos, permutamos nossas origens, e logo encolhem as presumidas distâncias. Houve muitas migrações neste mundo, e por inúmeros motivos, seres humanos abandonaram suas terras. Como se sabe hoje em dia, o globo é pequeno, e as distâncias têm pouca importância. Logo se chega a um nome que signifique algo para os dois, e com um mínimo de paciência, além de muita delicadeza, comprova-se, então, por incrível que pareça, que ambos fazem parte da mesma família e até mesmo já tenham conjeturado a sua mútua existência. Quem tiver predisposição para isso e guardar abertos os olhos e a memória, não terá necessidade de conquistar amigos, já que achará parentes em toda parte.
          “Mantenho um registro”, afirma a Prima-lunar, “e esta é a única razão por que viajo. Ainda não visitei nenhum país sem descobrir parentes. O mundo não pode ser tão mau como dizem. Por que não andam todas à procura de seus familiares? Ao invés de fazerem viagens ao estrangeiro, para serem estranhos ali, deveriam viajar no intuito de sentir-se em casa”.
          Ela demonstrou a verdade de suas suspeitas, e por isso, sentir-se-á à vontade onde quer que se encontre. Pois a primeira coisa que faz após a chegada a qualquer lugar é estabelecer uma família. Até nos menores países, orienta-se com facilidade, e se neles existissem apenas dez pessoas, uma delas seria, com absoluta certeza, sua parenta.
          Quando se preparava a primeira expedição à lua, cuidou em enviar junto uma mensagem à sua prima. Conseguiu convencer um dos astronautas da importância de aproveitar tal contato, e ele prometeu-lhe depositar antes de mais nada a carta na lua. Ainda não se sabe seguramente se a prima a recebeu. Mas tudo é possível, e quando se confirmar que seu pressentimento mais uma vez não a enganou, o apelido de “Prima-lunar”, que por enquanto lhe aplicam zombeteiramente, transformar-se-á em título honorífico.


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