25 de fevereiro de 2011

Na primeira frase, a cena

          Meu último natal
Marcelino Freire
          Aí o Leco resolveu matar o Papai Noel. De verdade. dar uma pedrada na cabeça dele assim que ele chegasse. Não pela chaminé, que não havia. pela janela do barraco. Aquela encruzilhada de esgoto. Como viria? Voando?
          Leco ficou esperando. O olho grudado no alto. Apertando o pedaço de paralelepípedo. Também trouxe uma faca, caso fosse preciso. Ou se o velho gordo revidasse. E gritasse. Eu disse para o Leco. Papai Noel não grita. Faz só ho, ho, ho. Leco riu, meio apressado. E me disse que papai Noel era rico. Eu disse que não era. Leco disse que era. Papai Noel era dono de uma fábrica. E vinha de longe. De um país cheio de neve. País pobre não tem neve. E Papai Noel era gordo. Muito gordo. E sorria. Era um homem muito rico, sim. Por isso fazia ho.
          Tudo começou porque a mãe do Leco falou que Papai Noel não traria a motoca. Era uma motoco muito cara. E outra: Leco nunca foi um bom menino. Xinga a mãe por qualquer coisa. Um dia, cuspiu na cara da vizinha. O máximo que ele poderia ganhar, adivinha. Uma bola. Velho pão-duro. No ano passado, trouxe uma boneca bem feia para a irmãzinha do Leco. Ele ficou revoltado. Para ele, um helicóptero torto. E o Leco não queria um helicóptero. Muito menos torto. Queria uma motoca. Grande. Uma que pisca-pisca. Vem até com capacete de polícia. [...]

O conto encontra-se no livro Rasif - mar que arrebenta, da Record, 2008.
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O  conto de Marcelino Freire começa com uma frase-cena. Só de ler "Aí o Leco resolveu matar o Papai Noel." já se visualiza, ainda que de modo impreciso e vário, uma cena. Mas, pela vítima, antecipa-se: Leco só pode ser um menino. É o início pelo meio, como sugere Tchecov. Retire-se o princípio e o fim em um conto - que ele seja só desenvolvimento. Em "Meu último natal", o fluxo é contínuo. As frases gotejam pela voz de um narrador infantil que conta da sua preocupação em ser cúmplice deste possível assassinato do bom velhinho. "A polícia dos Estados Unidos vai nos pegar. [...] Eu acho que eu sou um terrorista." O cenário surge em pinceladas rápidas, sem estancar o fluxo narrativo. Por entre frases de ação, detalhes como a janela miúda por onde o Papai Noel terá de passar, a camisa do Flamengo - pedido de natal do menino-narrador -, a chuva forte a provocar o medo de uma invasão de lama no barraco, não deixam dúvida: tudo se passa em uma favela bem pobre.  No ritmo rápido que as frases curtas imprimem, misturam-se humor e crítica social sem discurso algum. Não há tempo. Nos três paragrafos que iniciam o conto, acima citados, se percebe também a inversão temporal na escrita do conto. Primeiro vem o efeito, depois a causa. Primeiro a decisão, depois as suas motivações. Este recurso promove ainda mais dinamismo ao texto. No final, o autor oferece uma chave para a compreensão do título. Nada de bandeja, mas sem hermetismo. Pela poesia, sobra ao leitor a oportunidade de ser um intérprete, de ser inteligente, sem precisar ser um intelectual. Vale a pena conferir o texto na íntegra.
O Coletivo Angu de Teatro apresenta o espetáculo RASIF – Mar que Arrebenta baseado em doze contos do autor pernambucano Marcelino Freire.
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Outros exemplos de meninos e meninas narradores em Graciliano Ramos, Gunther Grass, Clarice Lispector e Guimarães Rosa.  

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