9 de fevereiro de 2011

Rabiscos obscuros no papel branco

 Bia Albernaz
Liniers. Macanudo
        Nem toda escrita necessariamente inscreve-se num gênero. Num grau para além do diário, muitas vezes a escrita oferece àquele que escreve a oportunidade de, ao dizer de si, por força da intensidade das palavras escritas, deixar de dizer de si. Assim, se é comum que se comece a escrever, pelo rascunhar de sentimentos íntimos, desabafos que cumprem a função de esvaziar o excesso de subjetividade, em um dado momento, aquele que escreve não mais prioriza sua atenção ao escoamento de seus desejos, interesses e lembranças, passando a prestar-se à canalização de uma existência invisível anterior e maior do que a sua individualidade. Desviando a atenção da sua veia a pulsar, o sujeito percebe que palavras têm pulsação própria, afirmam-se, e – ao dedicar-se ao desenvolvimento dessa vitalidade na linguagem – fortalece a sua escrita, pelo modo como diz as coisas e como assim a elas assegura uma existência.
          Pela escrita sem gênero, roçamos a poesia das coisas e abrimo-nos ao encantamento literário, mas a literatura achega-se ainda de modo incidental. Nesse processo de “letrafirmação”, profundamente amador, tal qual um primeiro namorado, o escritor não consegue responder à celebre questão proposta por Rilke ao aspirante a poeta acerca da sua real e imprescindível necessidade de escrever, como condição essencial de entrega à atividade da poesia [1]. Porém, apesar da falta de consciência do percurso, esse sujeito amador da escrita tem já a coragem de ficar diante de uma folha de papel em branco ou de uma tela de computador vazia e, se for preciso, sem fazer nada, até que a palavra chegue, arriscando-se a ser taxado como vagabundo, preguiçoso ou presunçoso (por que, afinal, esse sujeito não faz algo de realmente útil?).
          É difícil mesmo escrever algo que valha a pena, mas para isso o sujeito precisa se pôr a pensar-junto à escrita, estando próximo às coisas para afirmá-las corajosamente pela palavras certas, o que implica em levantar tampas de baú, abrir portas, atravessar a rua, sentar-se numa praça nunca dantes visitada, conversar com desconhecidos com a sinceridade de quem, ao conhecer seus pontos de vista, “dá corpo ao suceder”, como diz Guimarães Rosa [2]. Paradoxalmente, a literatura afasta-se das misérias, aproximando-se da comoção por elas provocada. O negativo inspira a alquimia.
           Diante da necessidade de embrenhar-se na obscuridade, o escritor tem nos livros grandes amigos. A ficção cria o distanciamento para quem busca a proximidade; e faz dos autores, personagens, de modo a produzirem valentia. E, se necessário, a criarem lendas a respeito de suas infâncias, de suas fraquezas, tornando-se clowns, a fim de saltarem da não-verdade como dissimulação para a mentira como acordo ou exagero, como parte da ritualização da escrita, em reverência à verdade dos nossos mitos.
          Tomemos como premissa que, mesmo a escrita mais íntima, mesmo aquela que se circunscreve à letrafirmação, busca a intensificação do trânsito do não-ser para o ser. Se não se tem a coragem de errar, de “crer nos impossíveis” de imaginar, de rasgar compromissos e modelos, não se escreve, porque a escrita começa num suporte invisível. Antes do papel, o sonho. A escrita delineia indefinições. Sem suprimi-las, amarra-as momentaneamente, para algum leitor de novo desatá-las.
Notas
1. Rilke, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Trad. Paulo Ronai. Rio de Janeiro: Globo, 1986.
2. Rosa, Guimarães. Grande sertão e veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.134.

Liniers, Macanudo

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