3 de maio de 2011

Corpo, alma e literatura

Ernesto Sábato (em "O escritor e seus fantasmas")
          Já mencionei a preeminência que Nietszche conferiu à ciência. Nessa escolha sintetiza-se a revolução antropocêntrica de nosso tempo. O centro não será mais o objeto nem o sujeito transcendental, mas a pessoa concreta, com uma nova consciência do corpo que a sustenta.
          O vitalismo de Nietzsche culmina na fenomenologia existencial, porque supera o mero biologismo sem renunciar à integridade concreta do ser humano. Para Heidegger, com efeito, ser homem é ser no mundo, e isso é possível graças ao corpo; o corpo é que nos individualiza, que nos dá uma perspectiva do mundo, do "eu e aqui". Não mais o observador imparcial e ubíquo da ciência ou da literatura objetivista, mas este eu concreto, encarnado em um corpo. Neste corpo que me converte em "um ser para a morte". Daí a importância metafísica do corpo.
          Essa concretude da nova filosofia sempre caracterizou a literatura, que nunca deixou de ser antropocêntrica, embora muitos de seus teóricos paradoxalmente assim quisessem. Essa concretude restitui ao homem sua autêntica condição trágica. A existência é trágica devido a sua dualidade radical, por pertencer ao mesmo tempo ao reino da natureza e ao reino do espírito: enquanto corpo, somos natureza e, em consequência, perecíeis e relativos; enquanto espírito, participamos do absoluto e da eternidade. A alma, puxada para cima por nossa ânsia de eternidade e condenada à morte por sua encarnação, parece ser a verdadeira representante da condição humana e a autêntica sede de nossa infelicidade. Poderíamos ser felizes como animal ou como espírito puro, mas não como seres humanos.
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Peter Weller, na adaptação de "O tunel", 1987. Para a coleção completa de capas e adaptações, clique aqui.
 Sentí que una caverna negra se iba agrandando dentro de mi cuerpo.  (El tunel)
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A voz do escritor: a métrica no corpo e na alma
Para falar sobre a voz do escritor, Alvarez passa pela escrita do corpo. Isto já foi dito: "escreve com sangue" é uma imagem que se tornou lugar-comum. Mas o que o autor traz está mais para o aparelho respiratório do que o circulatório. O coração, isolado dos pulmões, faz o órgão parecer menos trabalhador. A respiração é uma função involuntária e ao mesmo tempo controlável. 

No texto acima, Ernesto Sábato fala de alma, sugerindo que, no fazer literário o trabalho implica num enfrentamento entre o ímpeto de tornar a arte uma atividade meramente corpórea, impensada, mesmo que febril e árdua, e a crença de que a Literatura possa elevar o seu criador para além do comum, tornando-o espiritualmente mais próximo ao infinito. Na escrita com alma, coexistem dor e comedimento. 

Nesse sentido, a citação de I.A.Richards sobre o papel da métrica como um recurso para imprimir ritmo na poesia é bem esclarecedora:

Não é algo na estimulação, mas na nossa reação. A métrica acrescenta algo a todas as expectativas, dirigidas para fins variados, que concebem o ritmo como um padrão temporal definido, e seu efeito não é devido à nossa percepção de um padrão que nos é externo, mas a que nos tornemos, nós mesmos, padronizados. Com cada pulsação da métrica, uma onda antecipa dentro de nós voltas e reviravoltas, instalando, como ocorre, reverberações extraordinariamente conjugadas. Jamais entenderemos a métrica enquanto perguntarmos 'Por que o padrão temporal nos excita?' e deixarmos de perceber que o próprio padrão é uma vasta agitação cíclica que se espalha por todo o corpo, uma onda de excitação extravasando pelos canais da mente.

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