28 de julho de 2011

Conto: desenvolvimento de um teorema / variação de uma estrutura

Extraído de "A oficina do escritor", de Nelson de Oliveira
          Conto vem de contar (do latim computare: fazer conta, calcular, computar), verbo com inúmeros significados, dentre os quais narrar, referir, relatar. Há os que acreditam que todo conto deve apresentar o rigor formal de um teorema dividido em três partes — exposição, desenvolvimento e desenlace — e há os que acreditam que o conto-teorema é apenas uma das formas possíveis do conto. Talvez a menos desejável nos dias atuais.
          Edgar Allan Poe baseava sua teoria do conto na relação entre a extensão da narrativa e o efeito (inquietação, medo, dúvida, encantamento, excitação, perplexidade ou qualquer outro) que o autor deseja que a fruição da narrativa provoque no leitor. O conto-teorema encontrou em Poe seu melhor teórico e defensor. Para o escritor norte-americano (anos mais tarde Anton Tchekhov também adotará esse princípio) o conto só produzirá esse efeito único e fulminante, essa impressão total, se for apreendido de uma só assentada e mantiver o leitor sempre em suspense. Por isso, para exercer o domínio sobre o leitor, o conto não deve exigir mais do que duas horas de leitura atenta. Poe estendeu também ao poema sua filosofia da composição baseada no perfeito e explosivo casamento da extensão do textos com o efeito literário pretendido.
          Vladimir Propp, por outro lado, não se preocupava com a extensão da narrativa. Ele alicerçou sua rigorosa definição do conto folclórico russo, intitulada Morfologia do Conto Maravilhoso (1928), na análise cuidadosa das diferentes ações das personagens. A descrição estruturalista de Propp baseia-se nas trinta e uma ações constantes (ele as chama de funções) que as diferentes categorias de personagens (sete no total) podem executar ao longo da narrativa. Apesar de considerar apenas o conto popular, anedótico, de estrutura simples — manifestação da inventividade do povo —, o sistema de Propp foi posteriormente ampliado pelos seus seguidores europeus para abarcar também o conto literário, muito mais complexo. Porém o altíssimo número de funções nos contos modernos e nos contemporâneos, o desdobramento do caos em tantas ações graúdas e miúdas, em tantas categorias de personagens e de narrador, tudo isso inviabiliza a classificação segundo determinados padrões estruturais.
          Ricardo Piglia, incrementando a teoria do iceberg de Ernest Hemingway (o contista talentoso é sempre econômico: seu narrador revela muito pouco, deixando os fatos importantes apenas subentendidos), nas suas duas teses sobre o conto também mantém o foco no enredo: para ele todo conto sempre narra duas histórias, uma história visível (a ponta do iceberg) e uma secreta (o imenso corpo submerso do iceberg) narrada de forma elíptica e fragmentária. Para Piglia, o talento do contista está em entrelaçar ambas as histórias, de maneira que só no desenlace seja revelada, de modo surpreendente, a história que se construiu abaixo da superfície em que a primeira veio se desenrolando. Ainda estamos no território do conto-teorema, porém outras possibilidades começaram a ser esboçadas a partir desses axiomas.
***
Tchékhov recomendava que, ao terminar de escrever uma história curta, se suprimisse o começo e o fim, reforçando a impressão de que a prosa, perfeita em sua brevidade, só contivesse o miolo.

Estória alegre
          Doze horas de um claro dia de inverno... Neva muito, está um frio de rachar, Nadia dá-me o braço, os caracóis de suas têmporas e o fino pelo de seus lábios estão cobertos de um gelo prateado. Estamos no alto do outeiro. De nosso pés, até lá, em baixo, estende-se em declive regular, no qual o sol se reflete, como em um espelho. Perto de nós, um pequeno trenó, guarnecido de lã vermelha viva.
          Vamos escorregar, Nadia digo, suplicante. Uma só vez! Garanto-lhe que chegaremos sãos e salvos.
          Nadia, porém, tem medo. Todo o espaço que vai de suas pequenas botas até a base do monte de gelo parece-lhe um precipício apavorante, de uma incomensurável profundidade. Desfalece, perde o fôlego, quando olha para baixo ou quando apenas lhe proponho sentar-se no trenó... será um risco, ela poderá cair no abismo! Morrerá, ou perderá a razão.
          Peço-lhe... Não deve ter medo insisto , não compreende que é pusilanimidade, pura covardia?
          Ela acaba por ceder e eu percebo, em seu rosto, que teme perder a vida. Faço-a sentar, lívida, tremula, no trenó: enlaço-a e precipitamo-nos no abismo.
          O trenozinho voa como uma bala. O ar que cortamos fustiga-nos o rosto, uiva, assobia-nos aos ouvidos, faz arder nossa pele, belisca-nos cruelmente, procura arrancar-nos a cabeça do pescoço. A velocidade do vento nos corta a respiração. Dir-se-ia que o diabo em pessoa nos agarrara e, urrando, nos arrastava ao inferno. Em torno, os objetos fundem-se em uma longa faixa que foge, vertiginosamente. Mais um instante e estaremos mortos.
          Amo-a, Nadia – digo, baixinho.
          O trenó começa a diminuir sua marcha, o uivo do vento e o rangido dos patins estão menos assustadores, a respiração não mais nos falta e eis-nos finalmente lá embaixo. Nadia, mais morta do que viva, lívida, mal respira... Ajudo-a a levantar-se.
          Por nada no mundo recomeçaria diz-me fitando com seus grandes olhos, cheios de medo. Por nada no mundo! Quase morri!
          Ao cabo de um instante, recupera-se e olha-me interrogativamente: terei sido eu quem pronunciou aquelas palavras, ou ela imaginou tê-las escutado, no turbilhão? E eu, de pé, diante dela, fumo e examino atentamente minhas luvas.
          Nadia toma-me o braço e caminhamos um pouco, em torno do monte de neve. Visivelmente, o enigma não a deixa repousar. As palavras teriam sido pronunciadas por mim, ou não? Sim, ou não? Sim, ou não? É uma questão de amor próprio, de honra, de vida, de felicidade, uma questão muito grave, a mais grave do mundo. Ela me atira olhares impacientes, tristes, olhares perscrutadores, responde-me vagamente, espera que eu fale. Oh! Que jogo expressivo, nesse palminho de cara! Que jogo expressivo! Vejo-a lutar contra si própria, sinto sua necessidade de falar, de indagar... mas sinto, também, que não encontra as palavras, que está embaraçada, que a felicidade a inibe...
          Sabe...? diz-me, sem me olhar.
          Quê? pergunto.
          Diga... que acha, fazermos uma outra descida?
          Subimos ao alto do monte, pela escada. Novamente, faço-a sentar-se no trenozinho, lívida, trêmula; e mais uma vez nos entregamos ao remoinho assustador, mais uma vez, em pleno ruído, em plena corrida, digo, baixinho:
          Amo-a, Nadia.
          E o enigma continua enigma. Nadia, silenciosa, sonha... Reconduzo-a à casa, ela tenta retardar o andar, arrasta os passos e espera, sempre. Mas eu não vou pronunciar as palavras. Vejo que sofre, que faz enorme esforço para não dizer: “Não pode ter sido o vento... E eu não quero que tenha sido o vento.”
          No dia seguinte recebo este bilhete: “Se vai passear de trenó, hoje, venha a buscar-me. N.”  E desde então vou, diariamente, passear de trenó, com ela, e, a cada descida, repito as palavras de sempre:
          Amo-a, Nadia
          Logo ela se acostumou a essa frase, assim como nos acostumamos ao vinho ou à morfina. Já não pode viver sem ela. É verdade que a descida em trenó a assusta tanto quanto antes, mas agora o medo e o perigo acrescentam um encanto particular às palavras de amor, às palavras que, como antes, constituem um enigma e enlanguescem sua alma. As suspeitas caem sobre os mesmos personagens:  o vento e eu. Qual dos dois confessa seu amor, ela não sabe. Aparentemente, ela já não se importa de onde venha a confissão: que importância tem o frasco, face à embriaguez do perfume?
          Certa vez, ao meio-dia, dirijo-me sozinho ao trenó. No meio da multidão, vejo Nadia aproximar-se do outeiro e procurar-me com os olhos. Depois, sobe timidamente a escada... É terrível descer sozinha. Como é terrível! Está branca como a neve, treme, tem-se a impressão de que está a caminho do suplício... mas caminha olhando à frente, resoluta. Sem dúvida, decidiu-se a fazer uma experiência: ouvirá as doces e maravilhosas palavras sem que eu esteja? Vejo-a sentar-se no trenó, lívida, boca entreaberta de medo, fechar os olhos e lançar-se, depois de atirar um adeus para sempre à terra... Os patins rangem... Estará ouvindo as palavras? Não sei... Vejo-a, depois, sair do trenó esgotada, sem forças. E leio em seu rosto que continua sem saber se ouviu, ou não, alguma coisa. O pavor da descida tirou-lhe a faculdade de ouvir, de distinguir os sons, de compreender...
          E veio março. E a primavera. O sol torna-se mais acariciante, nosso outeiro de gelo escurece, perde seu brilho e termina por fundir-se. Adeus, passeios de trenó! Não mais onde a pobre Nadia possa ouvir palavras de amor, não mais alguém para pronunciá-las, pois já não há mais vento e eu vou partir para São Petersburgo, por muito tempo, talvez para sempre...
          Dois dias antes de minha partida, estava eu sentado em meu jardim, que uma alta paliçada eriçada devido a pontas, separava da casa de Nadia. Fazia ainda bastante frio, ainda havia neve sob o estrume, as árvores dormiam ainda, mas tudo isso anunciava já a primavera; e os corvos que se instalavam para dormir crocitavam ruidosamente. Aproximei-me da paliçada e olhei longamente por uma fenda. Vi Nadia parecer no alto da escadaria e erguer para o céu um olhar triste, dolorido... O vento primaveril, como um chicote, fustigava seu rosto pálido e abatido... lembrava-lhe, talvez, o vento que uivava a nossos ouvidos, no outeiro, quando ouviu as palavras de amor. Seu rosto assumiu uma expressão triste, e uma lágrima deslizou sobre ele. A pobre criança estendeu os braços, como se suplicasse à nortada que lhe trouxesse essas palavras, uma vez mais. Então, aproveitando uma lufada, murmurei:
          Amo-a, Nadia.
          Deus, o que lhe estaria acontecendo? Ela soltou um grito, um sorriso iluminou-lhe o rosto. Estendeu os braços para o vento, alegre, feliz, arrebatada! Eu fui arrumar minha mala.
          Isso foi há muito tempo. Nadia, agora, está casada: casou-se , ou casaram-na, pouco importa, com o secretário da Câmara da Nobreza e tem três filhos. Jamais esqueceu o tempo em que íamos andar de trenó, quando o vento levava até ela palavras de amor: Amo-a, Nadia. É, no momento, a mais feliz recordação, a mais tocante, a mais bela de sua vida...
          E eu, agora, mais amadurecido, não compreendo por que dizia tais palavras, por que me divertia com aquela brincadeira.
Contos de Tchékhov. Trad. Maria Jacintha. São Paulo: CEDIBRA, 1975.
Fotograma de Cidadão Kane (1941), dirigido por Orson Welles, uma biografia não linear de um magnata da imprensa americana, narrada sob vários pontos de vista. Sua última palavra: Rosebud.
*** 
Será possível aproximar o conto maravilhoso e o moderno? Haverá algum traço remanescente dos personagens tradicionais ou alguma de suas funções na "Estória alegre" de Anton Tchékhov?  Confira abaixo a síntese da morfologia do conto maravilhoso descrita por Vladimir Propp.

I.    Seqüência introdutória

1.    Membro da família deixa a família – herói é introduzido
2.    Interdição – não faça “x”
3.    Interdição é violada – herói faz “x” de qualquer maneira
4.    Vilão – reconhecimento do herói
5.    Vilão consegue informação sobre herói
6.    Vilão tenta derrotar herói com trapaça
7.    Herói submete-se à trapaça – cumplicidade

II.    Corpo da história
8. Vilão causa dano ou injúria através de vilania; vilania faz uma vítima, herói ou objeto mágico desejado, que precisa ser recuperada.
8a. Membro da família do herói precisa algo, ou quer algo. QUALQUER UM DESSES CONSTITUI UMA FALTA.
9. Falta se faz saber pelo herói
10. Herói concorda em fazer ação contrária
11. Herói deixa o lar

III.    Sequência do doador (agente mágico obtido)
12. Herói é testado/questionado
13. Herói reage
14. Herói recebe um objeto/agente mágico que lhe ajuda na missão
15. Transferência ao lugar onde a falta é sentida
16. Combate com vilão
17. Herói é marcado
18. Vilão é derrotado
19. Falta é liquidada – objeto da missão é obtido pelo herói (o conto frequentemente acaba aqui, mas opde continuar para a 4a esfera de ação)

IV.    Retorno do herói
20. Herói toma o caminho de volta
21. Herói é perseguido
22. Resgatado de perseguição (conto muitas vezes termina aqui, mas pode continuar)
23. Herói chega em casa e não é reconhecido
24. Falso herói apresenta reivindicações ao verdadeiro herói
25. Tarefa dificultosa se dá
26. Tarefa é resolvida
27. Verdadeiro herói é reconhecido
28. Falso herói é desmacarado
29. Epifania do novo herói – nova aparência/transfirguração
30. Vilão é punido
31. Casamento e papel do verdadeiro herói

Dramatis Personae
1. Herói (salvador ou vítima)
2. Vilão 
3. Doador (de quem o herói consegue algum objeto mágico)
4. Auxiliar Mágico (personagem que ajuda o herói em sua missão)
5. Despachante (personagem que faz a falta ser conhecida)
6. Falso herói (personagem que rouba os méritos pelas ações do herói)
7. Príncipe/princesa (pessoa com quem o herói/a heroína se casa)
8. Vítima (pessoa ferida pelo vilão, caso o herói não tenha sido o vitimado)
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