10 de julho de 2011

Série "Todos os contos de um caso" (6)

Zulmira e Maria
Arlette Santos
          Maria. Não é assim que as pessoas costumam se referir às domésticas, quando não querem se preocupar com seus nomes? Pois é, Maria iniciara seu dia ansiosa. Morando lá pros lados de Xerém – melhor dizendo, onde Judas perdeu as botas – acordou cedo, antes das cinco da matina, preparou a mamadeira do Zezinho e, ao entregá-la à criança, notou que ela estava com uma pontinha de febre. Se acordasse o Leleo pedindo que observasse o garoto e, se necessário o levasse à UPA, na certa ouviria uma série de desaforos. Melhor entregar pra Jesus: Ele olharia por seu filhote. Para completar, a patroa iria a uma festa à noite, e teria que repassar suas roupas.
          Completara quinze anos no emprego. Não podia se queixar: o pagamento era pouco acima do salário mínimo, recebia o auxílio-transporte, férias e demais direitos trabalhistas. Às vezes, quando se atrasava um pouco devido às dificuldades de transporte por conta da falta de ônibus, a viagem de metrô – afinal, de Xerém a Copacabana não era mole, não – quando se atrasava, Dona Zulmira não falava nada. Mas a maneira dela olhar o relógio incomodava. Embalada por esses pensamentos, chegou ao trabalho. Felizmente, sem atraso.
          Iniciou seus afazeres como sempre. Arruma aqui e ali, coloca jornais, revistas e objetos em seus devidos lugares. Por que as pessoas que têm empregadas costumam achar normal não dar nenhuma colaboração à boa arrumação dos espaços que utilizam? A patroa já saíra para o trabalho e deixara um bilhete reforçando o pedido para passar sua roupa, e que tivesse cuidado especial com o xale de seda chinesa – relíquia de família que daria destaque especial à sua roupa.
          Estava tão acostumada com suas tarefas que se mantinha calma. Qualidade sempre observada pela patroa. Depois de arrumar a cozinha, foi passar as roupas. De vez em quando, lembrava-se do Zezinho. Como estaria? Foi quando o telefone tocou. Desligou o ferro e foi atender. Ouviu quando a porta do quarto bateu. Ao voltar, percebeu – uma rajada de vento deslocara o xale para o lado do ferro. E fez um rombo que não dava para disfarçar. Ficou desesperada. Como justificar? Dobrou-o e foi tomar banho. Poderia sair como costumava fazer, mas teria que se explicar com a patroa. Resolveu aguardá-la.  Êta, vida complicada!
          Estava acabando de se arrumar quando ouviu a voz alterada da patroa. Ela chegara, fora imediatamente ver sua roupa e dera com a tragédia.
          – Maria, não há desculpa para o que você fez. Volte no dia 30, traga seus documentos e acertaremos suas contas.
          Ambas choraram. E lá se foi a Maria repetindo em sentido contrário seu trajeto diário. Rememorou o longo tempo que servira a Dona Zulmira. A gente acaba se acomodando, aí surgem os imprevistos. Ma de repente, sentiu uma grande calma. Afinal, sabia que tinha capacidade e arranjaria outro trabalho. Melhor é não esquentar a cabeça...
          Isso aconteceu com Maria. E Dona Zulmira, como estava? Passado o desabafo, cabeça fria, começou a refletir: será que exagerei? Encontrarei quem substitua Maria a contento? Afinal ela me foi útil durante tantos anos... Quando suas colegas comentavam as agruras por que passavam, trocando toda hora de empregada, sentia-se feliz. Esses problemas não existiam para ela.
          No dia seguinte, ao ir à área de serviço apanhar uma vassoura, observou que o varal, que estava com a corda arrebentada, fora restaurado. Coisas da Maria. Habilidosa, consertava tomadas, trocava lâmpadas... Iria sentir muito sua falta.  Tenho que rever minha decisão.
          Chegou o dia 30 e Maria chegou para acertar as contas. Tinha férias vencidas. Lá estavam as duas, emocionadas e tensas. Dona Zulmira tomou a iniciativa:
          – Maria, vamos esquecer o que houve. Você fica, e tudo volta a ser como era. Peço que dê mais atenção às suas tarefas.
          Para surpresa de Dona Zulmira, Maria, de cabeça baixa, porém com firmeza, respondeu:
          – Não é bem assim. Passei dias difíceis, dormindo mal pensando nos dias que enfrentaria e como a vida não é fácil saí à procura de um novo trabalho. Tive sorte. Alguém que a senhora até conhece me fez uma proposta. O salário é um pouco melhor e não trabalharei aos sábados. Mas mudança de emprego na minha idade assusta um pouco. Preciso de um tempo pra pensar. Entro de férias e dentro de alguns dias dou minha resposta.
***
Filme de Bruno Barreto de 1987, baseado nas obras de Clarice Lispector.
 Carla de Souza Santana escreveu um trabalho que deve ser interessante (veja o resumo, aqui). Chama-se "Sabedoria e humildade: um estudo sobre a presença das empregadas domésticas nas crônicas de Clarice Lispector". Concordo quando ela diz que, em suas crônicas, a autora amplia a compreensão acerca das empregadas, ultrapassando os estereótipos convencionais.
Abaixo um exemplo:

Conversa puxa conversa à-toa
Clarice Lispector
          Eu estava na copa tomando um café e ouvi a cozinheira na área de serviço cantando uma melodia linda, sem palavras, uma espécie de cantilena extremamente harmoniosa. Perguntei-lhe de quem era a canção. Respondeu: é bobagem minha mesmo.
          Ela não sabia que era criativa. E o mundo não sabe que é criativo. Parei de tomar o café, meditei: o mundo ainda será muito mais criativo. O mundo não se conhece a si próprio. Estamos tão atrasados em relação a nós mesmos. Inclusive a palavra criativa não será usada como palavra, nem mesmo vai se falar nela: apenas tudo se criará. Não é culpa nossa -  continuei com meu café - se estamos atrasados de milhares de anos. Ao pensar em “milhares de anos à nossa frente”, deu-me quase uma vertigem pois não consigo contar sequer com a cor que a terra terá. A posteridade existe e esmagará o nosso presente. E se o mundo se cria por ciclos, digamos, é possível que voltemos às cavernas e que tudo se repita de novo? Dói-me até o corpo ao pensar que não saberei jamais como o mundo será daqui a milhares de anos. Por outro lado, continuei, nós estamos engatinhando até depressa. E a toada que a moça cantava vai dominar esse mundo novo: vai-se criar sem saber. Mas por enquanto estamos secos como um figo seco onde ainda há um pouco de umidade.
          Enquanto isso a empregada estende roupa na corda e continua sua melopéia sem palavras. Banho-me nela. A empregada é magra e morena, e nela se aloja um “eu”. Um corpo separado dos outros, e a isso se chama de “eu”? É estranho ter um corpo onde se alojar, um corpo onde sangue molhado corre sem parar, onde a boca sabe cantar, e os olhos tantas vezes devem ter chorado. Ela é um “eu”.
Em: A descoberta do mundo, escrita originalmente para o “Jornal do Brasil” (16 de maio de 1970)

Frases retiradas de A paixão segundo GH
           Na minha casa fresca, aconchegada e úmida, a criada sem me avisar abrira um vazio seco.
*
          A lembrança da empregada ausente me coagia. Quis lembrar-me de seu rosto, e admirada não consegui - de tal modo ela acabara de me excluir de minha própria casa, como se me tivesse fechado a porta e me tivesse deixado remota em relação à minha moradia. A lembrança de sua cara fugia-me, devia ser um lapso temporário.
          Mas seu nome - é claro, é claro, lembrei-me finalmente: Janair. E, olhando o desenho hierático, de repente me ocorria que Janair me odiara. Eu olhava as figuras de homem e mulher que mantinham expostas e abertas as palmas das mãos vigorosas, e que ali pareciam ter sido deixadas por Janair como mensagem bruta para quando eu abrisse a porta.
*
          E havia também o guarda-roupa estreito: era de uma porta só, e da altura de uma pessoa, de minha altura. A madeira continuamente ressecada pelo sol abria-se em gretas e farpas. Aquela Janair nunca, pois, havia fechado a janela? Aproveitara mais do que eu da vista que se tinha da cobertura. O quarto divergia tanto do resto do apartamento que para entrar nele era como se eu antes tivesse saído de minha casa e batido a porta. O quarto era o oposto do que eu criara em minha casa, o oposto da suave beleza que resultara de meu talento de arrumar, de meu talento de viver, o oposto de minha ironia serena, de minha doce e isenta ironia: era uma violentação das minhas aspas, das aspas que faziam de mim uma citação de mim. O quarto era o retrato de um estômago vazio.

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