29 de agosto de 2011

Voz narrativa

Trechos de Os segredos da ficção de Raimundo Carrero
          O narrador não é o autor. O personagem ocupa o lugar do narrador.
          Para chegar ao personagem, o autor precisa conhecer a própria voz, a voz  de narrador, a voz narrativa.
          Erramos quase sempre porque não respeitamos a nossa voz narrativa, não amamos o nosso timbre, queremos imitar a tradição. Não conhecemos as nossas particularidades. Os outros escrevem muito bem, dizem. Só os outros. Não acreditamos na nossa capacidade. Complexo de inferioridade nunca ajudou ninguém. Agora é esquecer. Temos algo a revelar.
          A descoberta da voz narrativa impressiona e inquieta. Um processo doloroso, embora saudável. Em geral ela não se parece com nada, com ninguém, estúpida. Não segue os métodos de narração convencional. Não é descrição. Não é redação. Nada é nada. Não importa, isso mesmo – não importa. As palavras batem umas nas outras, fazem barulhos, confundem. Percebe-se depois, e com a paciência que conduz à luz: ali está nascendo um escritor.
***
No momento em que ouvi a minha própria voz, fiquei encantado: o fato de ser uma voz isolada, distinta, única, me deu alento. Não Não me importava se o que eu escrevia pudesse ser considerado ruim. Bom ou ruim saíram do meu vocabulário. Pulei com os dois pés no reino da est઼ética. Minha vida em si se tornou uma obra de arte.
Henry Miller, A sabedoria do coração
***
 Em geral, o que nos impede de descobrir essa voz é a descrença. Por algum motivo esquisito, nós, escritores, professores, leitores, gostamos de desanimar os iniciantes, os novatos, os indecisos. Dizemos: Não faça isso, você não sabe fazer. Não é a sua praia. Você não tem jeito. Esqueça. Deixe para os que sabem. E os que sabem, começaram de que maneira? Refletindo, lendo e escrevendo.

19 de agosto de 2011

I Concurso de Contos para Idosos - Prêmio Rubem Fonseca (Recado)

Para moradores do município do Rio com mais de 60 anos
Tema: “Meu Rio de Janeiro”
Tamanho máximo: 100 linhas
Prazo final: 30 de agosto
Resultado: 30 de setembro de 2011 (com premiação no final do mês de novembro)
Premiação
1º lugar: R$ 2.000
2º lugar: R$ 1.500
3º lugar: R$ 900
4º lugar: R$ 600

Iniciativa: Secretaria Especial de Envelhecimento Saudável e Qualidade de Vida (SESQV)
Rua Afonso Cavalcanti, 455, 5º andar, sala 571, Cidade Nova
IMPORTANTE
Só será permitida a inscrição de um conto por participante.
O texto tem de ser inédito.
Não pode ter sido divulgado ou publicado, nem mesmo pela internet, mesmo que em parte.

Para acessar o Regulamento completo do Concurso clique AQUI.

15 de agosto de 2011

O poema de circunstância; a crônica

Bia Albernaz
          Escrever sob uma circunstância é escrever propositalmente sem a inspiração de forças ocultas, mas sob a força de alguém bem visível, num momento bem palpável. É deixar-se empolgar, sem se importar com o acabamento para que o entusiasmo não esmoreça sob a ação do poeta que quer brilhar mais do que a coisa que o empolga. É escrever sem outra pretensão que o propósito de destacar ainda mais a circunstância.
          Sob o abrigo da circunstância, sem pompa, escreve-se um texto fresco, feito sob o calor que se faz sentir como um relance, uma verdade, meio encoberta e meio à mostra. A questão é: o amor se anuncia ou deve manter-se calado em seu fervor? O risco é que o excesso de intenção engula a beleza espontânea que, para continuar sendo espontânea, precisa ser passageira.
          Este tema se apresentou depois que fui a um show do Guinga, no Parque Lage, que gostaria de recortar e colar num álbum como um dos momentos especiais de minha vida.  A transcrição aqui do que rascunhei, ainda sob os efeitos de seus acordes, justifica-se como exercício e como oportunidade para pensar sobre o difícil equilíbrio entre o descompromisso com a forma e a responsabilidade frente aos sentimentos poéticos que determinadas circunstâncias despertam e que acreditamos devam ser destacados; entre o compromisso com a poesia como companhia para sublinhar estados de graça e a irresponsabilidade de ferir a ética do bom poeta, que uma vez me foi traduzida por um atual membro da Academia Brasileira de Letras da seguinte maneira: "se você não achar que seu poema pode ser um exemplar digno de ser encontrado numa ilha deserta em caso de destruição total de todos os outros poemas da face da terra, então abstenha-se". Será que os poemas de circunstância são apenas atos de incontinência verbal, mesmo que poética?

Com o Guinga em meus ouvidos, não tem erro, só proveito. Até a imperfeição ao redor parece boa. A realidade fica marota, vira um maremoto.

Com o Guinga, as mãos tocam no invisível. E os pés, o corpo, tocam o chão e o ar ao mesmo tempo, no mesmo ritmo.

O abraço o violão os dedos a madeira. Deslizar apertar castigar fechar os olhos deixar. O lá bem fundo de um metal e um violão mais redondo que uma bola.

Com o Guinga, um bocado de vozes velhas, de riso sério, de gente no escuro fala: obrigada, ó mestre.

Guinga fala sobre o uso do dedo polegar nos acordes. Inspire-se AQUI.
***
         Manuel Bandeira em "Mafuá do Malungo" (1948) publica todo tipo de versos de circunstância: jogos onomásticos, réplicas e agradecimentos; panegírios e saudações. Mesmo as dedicatórias podem ser consideradas "de circunstância", o que não quer dizer "sob encomenda" porque o poema de circunstância é feito com total espontaneidade; para uso doméstico. Parecem estar ali apenas para mostrar que a poesia faz companhia ao poeta em momentos especiais para ele, mas que permanecem impossíveis de serem acessados pelos leitores do "poema" que, de tanta puerilidade, chega a ganhar aspas. Eis alguns exemplos:

Tuquinha
Você chamou Maria Helena "o anjo lindo de Tuquinha".
Na realidade você o anjo lindo de Maria Helena,
O anjo lindo de Branca,
O anjo lindo de Branquinha,
O anjo lindo de Isabel,
O anjo lindo de Manuel,
O anjo lindo de nós todos.

Reza a Deus por nós, anjo lindo: aos anjos ele atende.

          Quem conheceu pessoalmente o poeta, ou quem se dedicou a estudar a sua biografia, poderá facilmente identificar a circunstância que cercou a criação desse poema. Mas, mesmo sem saber quem é quem, pode-se desfrutar do gesto de compartilhar um momento, em que a poesia curva-se, dobra-se, reverencia algo ou alguém a ponto de contentar-se apenas com a insinuação, tal como se lê no poema abaixo:

Louvado e Prece
   Isabel querida
   — A menininha
   mais bonitinha
   mais engraçadinha
   mais bizurunguinha
que eu vi na minha vida
   — amorável
      adorável,
   a d o r á v e l !

Mas é mesmo uma menina?
    Ou será, Manuel,
    lírio da campina
botão de rosa no galho,
    ou, na manhã fria
    de abril, cristalina
    gotinha de orvalho?
    (De orvalho ou de mel?)
    Se não é um doce,
    é como se fosse.

    É mais: um anjinho
    muito seriozinho
    caído do céu
    por descuido, com
    uma bonequinha
    loura e coradinha
    nos braços. Que bom
    que é um anjo fresquinho
    caído do céu!
                   *
Rogo a Deus, nosso Senhor,
seres meu anjo-guardião:
se um dia, seja em que for,
eu cair em tentação
(sou tão grande pecador!)
peço-te que tu me salves,
salves o bardo Manuel,
         Isabel,
    — Isabel Moreira Alves.

          Apenas para não parecer que todos os poemas de circunstância de Bandeira tem Deus e anjo no meio, transcrevo mais um:

Agradecendo doces a Stella Leonardos
1. Doces de açúcar e gemas
    São teus versos, e teus doces
    Sabem a poemas: não fosses
    Toda doce em cada poema!

2. Pouco e coco rimam, sim,
    Mas quando o coco é o seu coco,
    Que, por mais que seja, é pouco
    (Pelo menos para mim!).

3. Não veio doce, mas veio
    Verso seu, que me é tão doce
    Como se doce ele fosse:
    Mais que doce: doce e meio!

***
          As crônicas de modo geral são circunstanciais. Ao que parece, porém, a relação com o tempo na crônica é diferente daquela vivida no poema de circunstância, que celebra o fugidio, o efêmero, e não se preocupa em construir nada de edificante. Uma das críticas que se faz ao Drummond-cronista é que suas crônicas tornaram-se datadas. Em muitas deles, o poeta gasta laudas e laudas para, por exemplo, comentar uma gíria ou fazer um elogio às minissaias, como se fossem novidades. O problema é que, no momento em que foram alvo da escrita do poeta, de fato a gíria e a minissaia indicavam circunstâncias  especiais. Contudo, com o decorrer do tempo, perderam o interesse. E assim Drummond, em muitas de suas crônicas, rapidamente se tornou anacrônico, sem alcançar o histórico.
          No entanto, talvez só agora, depois de ter refletido sobre a grandeza do poema de circunstância, eu  tenha sido capaz de ler o eterno nas entrelinhas do datado. Se não, vejamos:

          PELÉ:1000
          O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé. Aquele gol que gostaríamos tanto de fazer, que nos sentimos maduros para fazer, mas que, diabolicamente, não se deixa fazer. O gol.
          Que adianta escrever mil livros, como simples resultado de aplicação mecânica, mãos batendo máquina de manhã à noite, traseiro posto na almofada, palavras dóceis e resignadas ao uso incolor? O livro único, este não há condições, regras, receitas, códigos, cólicas que o façam existir, e só ele conta — negativamente — em nossa bibliografia. Romancistas que não capturam o romance, poetas de que o poema está-se rindo à distância, pensadores que palmilham o batido pensamento alheio, em vão circulamos na pista durante 50 anos. O muito papel que sujamos continua alvo, alheio às letras que ele exigia de nós. E quantos metros cúbicos de suor, para chegar a esse não-resultado!
          Então o gol independe de nossa vontade, formação e mestria? Receio que sim. Produto divino, talvez? Mas, se não valem exortações, apelos cabalísticos, bossas mágicas para que ele se manifeste... Se é de Deus, Deus se diverte negando-o aos que o imploram, e , distribuindo-o a seu capricho, Deus sabe a quem, às vezes um mau elemento. A obra de arte, em forma de gol ou de texto, casa, pintura, som, dança e outras mais, parece antes coisa-em-ser na natureza, revelada arbitrariamente, quase que à revelia do instrumento humano usado para a revelação. Se a obrigação é aprender, por que todos que aprendem não a realizam? por que só este ou aquele chega a realiza-la? por que não há 11 Pelés em cada time? Ou 10, para dar uma chance ao time adversário?
          O Rei chega ao milésimo gol (sem pressa, até se permitindo o charme de retitficar para menos a contagem) por uma fatalidade à margem do seu saber técnico e artístico. na realidade, está lavrando sempre o mesmo tento perfeito, pois outros tento menos apurados não são de sua competência. sabe apenas fazer o máximo, e quando deixa de destacar-se no campo é porque até ele tem instante de não-Pelé, como os não-Pelés que somos todos.
          O mundo é feito de consumidores, servido por alguns criadores. O desequilíbrio é dramático, e só não determina a frustração universal porque não nos damos conta de nossa impotência criadora, e até nos iludimos, atribuindo-nos uma potência imaginária. Ainda por absurdo desajuste, a criação, em muitas áreas, nem sequer é absorvida pelos consumidores em carência. Muitos seres não sabem consumir, vegetando em estado de privação inconsciente. para o consumo, sim, é necessário aprendizado. Mas os bilhões de analfabetos, subnutridos e marginalizados, dos mundos ocidental e oriental, não desconfiam sequer de que há alimentos fascinantes para fomes não pressentidas.
          Afortunadamente, no caso de Pelé, a comida de arte que ele oferece atinge o paladar de todos. O futebol é desses raros exemplos de arte corporal e mental que promovem a felicidade unânime, embora dividindo a massa de consumidores em grupos antagônicos. Antagonismo formal, pois a fusão íntima se opera em torno da beleza do gesto, venha de que corpo vier.
          Os mil gols de Pelé são um só, multiplicado e sempre novo, único em sua exemplaridade. Não sei se devemos exaltar Pelé por haver conseguido tanto, ou se nosso louvor deve antes ser dirigido ao gol em si, que se deixou fazer por Pelé, por uma dessas misteriosas escolhas que a genética ainda não soube explicar, pois a ciência, felizmente, ainda não explicou tudo neste mundo.
Extraído de O poder ultrajovem (1972)

9 de agosto de 2011

História e ficção (reconto)

A NOITE DE PILATOS (extraído de Histórias Apócrifas)
Karel Tchápek
          Naquela noite, Pilatos jantava com o seu ajudante de ordens e com Susa, um jovem tenente oriundo de Cirenaica. Susa mal percebera que, então, de forma pouco habitual, o governante estava muito calado. E Susa tagarelava alegremente, fazendo anedotas a respeito do primeiro terremoto que presenciara em sua vida.
          — Foi uma comédia excelente — berrava entre dois bocados. — Quando escureceu, após o almoço, corri para a rua para ver o que afinal de contas estava acontecendo. Na escadaria, tive uma sensação de que as minhas pernas estavam adormecendo ou escorregando. Posso afirmar que foi muito engraçado. Palavra, Excelência, desde que me dou por gente jamais poderia imaginar que um terremoto é assim. Antes que eu pudesse chegar à esquina, os civis já estavam correndo em minha direção, olhos esbugalhados, gritando como tresloucados: “As sepulturas vão se abrir, os rochedos vão rebentar!” Com os diabos, pensei, vai ver que é um terremoto! Rapaz, disse a mim mesmo, você tem uma sorte danada! Um fenômeno tão raro da natureza, não é mesmo? 
          Pilatos meneou a cabeça.
          — Já presenciei um terremoto na Cilícia, lá se vão uns dezessete anos. Mas a coisa, então, foi bem maior.
          — Bem, então podemos dizer que nem aconteceu coisa alguma — exclamou Susa, de maneira impensada. — No caminho que conduz a Hakeldamá rompeu-se um pedaço de rochedo. Sim, e alguns túmulos abriram-se dentro do cemitério. Admira-me muito que, neste país, eles cavem sepulturas tão rasas; não chegam a ter um côvado. No verão, deve ser uma fedentina...
          — É o hábito — resmungou Pilatos. — Na Pérsia, por exemplo, eles simplesmente não enterram os mortos: colocam o cadáver debaixo do sol, e pronto.
          — Meu senhor, isso deveria ser proibido! — objetou Susa. — Por razões de saúde pública, etecétera.
          — Proibir! — murmurou Pilatos. — Nesse caso, você não poderia fazer outra coisa a não ser ficar dando ordens e proibir-lhes alguma coisa, o tempo todo. Essa é uma política ruim, Susa. Não devemos imiscuir-nos nos negócios deles; pelo menos, nesse caso eles ficam quietos. Se vocês desejam viver como selvagens, bem, seja feita a vontade de vocês. E olhe, Susa, que eu já andei por muitos países...
          — Gostaria de saber como é que surge um terremoto destes — voltou Susa ao objeto de sua curiosidade momentânea. — Digamos que existem buracos debaixo da terra e eles, assim, sem mais nem menos, desabam. Está certo; isso eu consigo entender. Mas por que o céu fica encoberto? Não tenho inteligência suficiente para compreender. Pela manhã, o céu ainda estava limpo...
          — Peço-vos perdão — manifestou-se o velho Papadokitis, um grego do Dodecaneso que servia à mesa. — Já ontem à noite era possível ver que alguma coisa estava se preparando. O pôr-do-sol estava extraordinariamente rubro. Eu havia dito à minha cozinheira: “Miriam, amanhã teremos tempestade ou ciclone”. E Miriam respondeu: “E eu tenho dores nas costas”. Já se podia esperar que o tempo ficasse ruim. Peço-vos que me perdoem, novamente.
          — Já se podia esperar — repetiu Pilatos, cismado. — Sabe, Susa, eu também esperava que algo acontecesse hoje. Aliás, desde a manhã de hoje, quando entreguei para eles aquele homem de Nazaré; precisei entregá-lo, porque, segundo o conceito romano de política, não nos devemos imiscuir nos assuntos internos dos nativos. Guarde bem isso, Susa; quanto menos relações as pessoas tiverem com o poder do Estado, mais facilmente serão eles capazes de suportá-lo... Por Júpiter! onde foi que eu parei?
          — Naquele nazareno — auxiliou Susa.
          — Sim, o nazareno! Sabe, Susa, interessei-me um pouco por ele. Nasceu em Belém. Eu creio que os nativos efetivamente cometeram um crime contra ele. Mas, afinal de contas, isso é um assunto deles. Se não lhes entregasse aquele nazareno, iriam crucificá-lo da mesma forma; e, nesse caso, apenas a autoridade romana acabaria sendo prejudicada. Mas, espere: isso não tem nada a ver com o resto. Ananias disse que ele era um homem perigoso; quando nasceu, os pastores de Belém acorreram para junto dele e renderam-lhe homenagens, como se fosse um rei! Há pouco tempo, receberam-no, nesta cidade, como se fosse um comandante vitorioso. Isso não entra na minha cabeça, Susa. Em verdade, eu esperava que...
          — Esperava o quê? — observou Susa, após um longo silêncio.
          — Que os habitantes de Belém viessem para cá. Que eles não o deixassem cair nas garras destes intrigantes daqui. Que eles se apresentassem a mim e dissessem: “Senhor, ele é um dos nossos e, portanto, zelamos por ele; viemos dizer-vos que estamos com ele, e não permitiremos que se cometa uma injustiça contra ele”. Susa, realmente eu teria ficado contente com aqueles montanheses. Eu já estou por aqui com estes insolentes e rábulas... Eu teria dito a eles: “Que Deus esteja convosco, homens de Belém; esperava-vos. Por causa dele — e por causa de vosso país também. Não se pode governar marionetes; somente é possível governar homens, mas não esses linguarudos... Homens como vós serão os soldados que não se rendem; homens da vossa espécie é que constituem os povos e as nações. Ouvi dizer que esse vosso patrício ressuscita os mortos. Mas, por favor, o que faríamos nós com os mortos? Mas vós estais aqui, e vejo que esse homem é capaz de ressuscitar os vivos também; que ele conseguiu inocular-vos alguma coisa que se assemelha à lealdade e à honra. A isso, nós, romanos, chamamos virtus; nem sei como se diz isso em vossa língua, homens de Belém, mas isso está dentro de vós. Creio que esse vosso homem ainda será capaz de fazer algo. Seria uma pena por ele.
          Pilatos calou-se e limpou, metodicamente, as migalhas da mesa.
          — Mas não vieram — resmungou. — Ó, Susa, que coisa mais estéril é governar!

***
EM ALGUM LUGAR
Ruth Liftschits
          — Acho que você deve dar uma olhadinha nisso aqui  — Guidobaldo estendeu o jornal para o amigo.
          — Não, deixa pra lá, Guido. Não quero me aborrecer mais. Nada vai mudar coisa alguma. E não importa, na verdade não importa. O que é já é, vai ser e sempre será.
          — Mas Gali, é o Papa, ele falou para um público enorme lá na Terra.
          — Há sempre um Papa falando para um público enorme de ignorantes...
          — Mas é diferente, é importante. É o Papa João Paulo II se retratando em público. Ouça, preste atenção: “1992, Ano dedicado à Astronomia. 31 de outubro de 1992, a Igreja revê suas posições no confronto com Galileu.” É a Igreja reconhecendo que errou!  Até Urbano VIII esteve atento à cada palavra.
          — Urbano, aquele maledeto. Não me fale desse traidor. Insistiu para que eu publicasse meu trabalho. Dediquei O Analisador a ele, pensando estar homenageando um progressista, um amante da ciência, mas qual...fui julgado, proibido de dar aulas, preso e confinado aos limites de minha casa.
          — Galileu, poderia ter sido muito pior. Giordano Bruno foi para a fogueira.
          — Tem razão, mas há males que perduram, reverberam pela eternidade. Veja nosso querido mestre Copérnico, deprimido e triste até hoje.  Alcançou fama imortal, mas foi ridicularizado e vaiado por uma multidão infinita. O número de idiotas é e sempre vai ser incomensurável. Urbano era o Papa e não fez nada para me defender. Autoridade máxima que não moveu uma palha em meu favor; deixou que me anarquizassem. Todos duvidaram do meu conhecimento, minhas palavras foram deturpadas.
          — Você exagera tudo, Galileu. Até suas descobertas são exageradas.
          — Volte para sua matemática, Guidobaldo. Há mais certezas nela e muito mais satisfação. Não quero saber de retratações, seja em que século for. A Igreja muda de opinião como quem troca de roupa. O heliocentrismo se impôs. É uma verdade agora. Quiseram nos convencer que um sol imóvel é uma heresia, que a Terra se mover seria algo teologicamente errado. Bando de ignorantes. Naquela época, eu apontava os erros do método aristotélico, não queria atacar a fé. Sou religioso, acredito em Deus, sempre fui assim.

          Por mais que se esforçasse, Guidobaldo del Monte não conseguiu convencer seu amigo a ler e aceitar a retratação. Galileo Galilei afastou-se, novamente tomado por suas idéias, decidido a resolver de uma vez por todas se Plutão é um planeta anão  ou um simples plutóide do Sistema Solar.
          Solitária, a figura recolheu seus objetos e preparou-se para mais uma profunda observação da região do cinturão de Kuiper.

7 de agosto de 2011

Tradição e talento individual (trechos)

T.S.Eliot
Um dos fatos capazes de vir à luz nesse processo [de criticar] é nossa tendência em insistir, quando elogiamos um poeta, sobre os aspectos de sua obra nos quais ele menos se assemelha a qualquer outro. Em tais aspectos ou trechos de sua obra pretendemos encontrar o que é individual, o que é a essência peculiar do homem. Salientamos com satisfação a diferença que o separa poeticamente de seus antecessores, em especial os mais próximos; empenhamo-nos em descobrir algo que possa ser isolado para assim nos deleitar. Ao contrário, se nos aproximarmos de um poeta sem esse preconceito, poderemos amiúde descobrir que não apenas o melhor mas também as passagens mais individuais de sua obra podem ser aquelas em que os poetas mortos, seus ancestrais, revelam mais vigorosamente sua imortalidade. E não me refiro à época influenciável da adolescência, mas no período de plena maturidade.
***
Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos.
***
Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles. A ordem existente é completa antes que a nova obra apareça; para que a ordem persista após a introdução da novidade, a totalidade da ordem existente deve ser, se jamais o foi sequer levemente, alterada; e desse modo as relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo são reajustados; e aí reside a harmonia entre o antigo e o novo.
***
Num sentido peculiar, terá ele [o poeta] também a consciência de que deve inevitavelmente ser julgado pelos padrões do passado. Eu disse julgado, não amputado, por eles; julgado não para ser tão bom quanto, ou pior ou melhor do que o morto; e decerto não julgado pelos cânones de críticos mortos.
***
Alguém disse: "os escritores mortos estão distantes de nós porque conhecemos muito mais do que eles conheceram". Exatamente, e são eles aquilo que conhecemos.
***
Estou cônscio de uma objeção habitual àquilo que claramente faz parte de meu programa para o métier da poesia. A objeção é que a doutrina requer uma ridícula soma de erudição (pedanteria), alegação que pode ser rejeitada se recorrermos às vidas de poetas de qualquer panteão. Isso equivaleria a afirmar que uma grande cultura debilita ou perverte a sensibilidade poética. [...] Shakespeare adquiriu mais noções básicas de história nos textos de Plutarco do que maioria dos homens poderia ter adquirido em todo o Museu Britânico. O fundamental consiste em insistir que o poeta deva desenvolver ou buscar a consciência do passado e que possa continuar a desenvolvê-la ao longo de todo a sua carreira.
***
 O efeito de uma obra de arte sobre a pessoa que dela desfruta é uma experiência distinta em espécie de qualquer outra que não pertença ao campo da arte. Ela pode ser formada a partir de uma emoção, ou resultar da combinação de muitas; e vários sentimentos, inerentes para um escritor a palavras, frases ou imagens, podem ser acrescentados para compor o resultado final. Ou a grande poesia pode ser escrita sem o emprego direto de emoções, sejam elas quais forem, isto é, composta sem qualquer recurso aos sentimentos.
***
Não é em suas emoções pessoais, as emoções induzidas por episódios particulares em sua vida, que o poeta se torna, de algum modo, notável ou interessante. Suas emoções particulares podem ser simples, ou rudes, ou rasas. Em sua poesia, a emoção será algo de muito complexo, mas não com a complexidade das emoções de pessoas que revelam em vida emoções muito complexas e inusuais. Na verdade, há um erro de excentricidade em poesia que deve ser creditado à busca de novas emoções humanas a serem expressas; e nessa busca da novidade em lugares errados aflora o perverso. O objetivo do poeta não é descobrir novas emoções, mas utilizar as corriqueiras e, trabalhando-as no elevado nível poético, exprimir sentimentos que não se encontram em absoluto nas emoções como tais. E emoções que ele jamais experimentou servirão, por sua vez, tanto quanto as que lhe são familliares.
***
Há um punhado de coisas nos textos poéticos que devem ser conscientes e deliberadas. Na verdade, o mau poeta é habitualmente inconsciente onde deve ser consciente, e consciente onde deve ser inconsciente. Ambos os erros tendem a torná-lo "pessoal". A poesia não é uma liberação da emoção, mas uma fuga da emoção; não é a expressão da personalidade, mas uma fuga da personalidade. Naturalmente, porém, apenas aqueles que têm personalidade e moções sabem o que significa querer escapar dessas coisas.
***
A fusão dos elementos emocionais e sensíveis - Eliot e Dante
          Em certo trecho do artigo "Tradição e talento individual", Eliot cita o Canto XV do Inferno de A Divina Comédia de Dante, e comenta a sua última quadra. Os quatro versos, diz ele, mostram um sentimento só perceptível pela apreensão da imagem usada pelo poeta. Ou seja: não há divisão entre sentimento interno e sensibilidade em relação ao externo. Ambos acontecem juntos. A imagem escolhida por Dante, prossegue Eliot, "provavelmente se encontrava suspensa na mente do poeta onde ficam incorporadas frases, sentimentos, imagens que ali pairam até que todas as partículas tornam-se capazes de se unir para formar um novo composto".
          Dante escreve a "Divina Comédia" na 1a pessoa e o tempo inteiro se reporta a um desejo seu, a uma experiência sua. Mesmo assim não se pode dizer que sua literatura é pessoal. Em 1265, não existia a subjetividade como fruto da modernidade, pelo banimento do morto em favor de um presente sempiterno e controlável pelo sujeito. O que Dante mostra é o embate de um poeta vivo em busca de um mundo morto. De um lado, encontra-se a eternidade; de outro, a temporalidade. Pela amálgama das duas, o poeta forja a língua italiana.
          O Canto citado por Eliot se passa no Círculo sétimo, o dos sodomitas que, "sob o fogo, se moviam incessantemente". Ali, ao reencontrar seu antigo mestre Bruneto Latino ou Brunetto Latini, o poeta proclama:
Viva em minha lembrança se demora
o caro e grato vulto teu paterno,
quando a mim, lá em cima, hora por hora,

mostravas como ser se torna eterno;
e quanto em nosso mundo te prezei,
em tom proclamarei atento e terno.

          Pesquisando um pouco mais o sentimento aí contido, deparamo-nos com a relação histórica entre a pedagogia e a pedofilia. O tratamento do tema foge completamente ao escandaloso. No site de Giovanni Dall'Orto, lê:
            Dante tratta Brunetto con tale deferenza (arrivando a indicarlo come il suo maestro intellettuale) che generazioni della Comedia si sono scandalizzate: com'era possibile che una persona colpevole del più sozzo di tutti i peccati fosse trattata con tale rispetto nell'Inferno?
            La risposta è, come correttamente sottolinea l'Enciclopedia dantesca*, che Dante è figlio d'un'epoca in cui la sodomia era per la morale religiosa un peccato gravissimo, ma per la morale laica non era altrettanto grave: fu solo durante l'ultima parte della vita di Dante che la morale laica cambiò al punto che i Comuni italiani approvarono le prime leggi che punivano con la morte la sodomia.
* Enciclopedia dantesca, Istituto dell’Enciclopedia Italiana - Treccani, Roma 1976, vol. 5, pp. 285-287.
 
          Apesar de Eliot não estar preocupado com essa questão, mais apropriada a uma crítica baseada em  Estudos Culturais, esse dado "acessório" corrobora para sua visão de que "padrões do passado" permanecem como fonte de questionamento em relação ao presente. De volta aos elementos literários especificamente (será possível isolá-los dos valores culturais?), voltemo-nos para a última quadra do canto XV, tal como sugerido por Eliot:

Partiu, ligeiro, como os que correndo
vão, no campo, em Verona, o pálio verde,
e veloz, como ia, parecendo
mais o que vence a prova que o que a perde.

Tradução de:
Poi si rivolse e parve di coloro
che corrono a Verona il drappo verde
per la campagna. E parve di costoro
quelli che vince non colui che perde


          Parece que realmente havia em Verona uma corrida conhecida como "corsa del drapo verde". Dante viveu lá quando exilado de Florença. Até hoje acontece uma "corsa del palio", em Siena. O pálio verde era uma espécie de manto para que a população pudesse identificar o vencedor dentre aqueles que corriam a pé e nus, segundo a história da corrida (cf. WorldwideRunning). O que importa sublinhar, no entanto, é a combinação de todos esses dados com a emoção de Dante. Essa está posta não pela intensidade das palavras que poderiam expressá-la de modo explícito e óbvio. O que conta é a intensidade do processo artístico, diz Eliot, "a pressão", por assim dizer, sob a qual ocorre a fusão.
          Para quem quiser continuar a pesquisa e leitura do Dante, Eliot cita ainda os cantos V (episódio de Paolo e Francesca) e o XXVI (encontro com Ulisses) como exemplares para a compreensão da força de artista ao fundir elementos.
Os versos aqui incluídos foram retirados da edição integralmente traduzida, anotada e comentada por Cristiano Martins. Itatiaia / USP, 1979.