15 de agosto de 2011

O poema de circunstância; a crônica

Bia Albernaz
          Escrever sob uma circunstância é escrever propositalmente sem a inspiração de forças ocultas, mas sob a força de alguém bem visível, num momento bem palpável. É deixar-se empolgar, sem se importar com o acabamento para que o entusiasmo não esmoreça sob a ação do poeta que quer brilhar mais do que a coisa que o empolga. É escrever sem outra pretensão que o propósito de destacar ainda mais a circunstância.
          Sob o abrigo da circunstância, sem pompa, escreve-se um texto fresco, feito sob o calor que se faz sentir como um relance, uma verdade, meio encoberta e meio à mostra. A questão é: o amor se anuncia ou deve manter-se calado em seu fervor? O risco é que o excesso de intenção engula a beleza espontânea que, para continuar sendo espontânea, precisa ser passageira.
          Este tema se apresentou depois que fui a um show do Guinga, no Parque Lage, que gostaria de recortar e colar num álbum como um dos momentos especiais de minha vida.  A transcrição aqui do que rascunhei, ainda sob os efeitos de seus acordes, justifica-se como exercício e como oportunidade para pensar sobre o difícil equilíbrio entre o descompromisso com a forma e a responsabilidade frente aos sentimentos poéticos que determinadas circunstâncias despertam e que acreditamos devam ser destacados; entre o compromisso com a poesia como companhia para sublinhar estados de graça e a irresponsabilidade de ferir a ética do bom poeta, que uma vez me foi traduzida por um atual membro da Academia Brasileira de Letras da seguinte maneira: "se você não achar que seu poema pode ser um exemplar digno de ser encontrado numa ilha deserta em caso de destruição total de todos os outros poemas da face da terra, então abstenha-se". Será que os poemas de circunstância são apenas atos de incontinência verbal, mesmo que poética?

Com o Guinga em meus ouvidos, não tem erro, só proveito. Até a imperfeição ao redor parece boa. A realidade fica marota, vira um maremoto.

Com o Guinga, as mãos tocam no invisível. E os pés, o corpo, tocam o chão e o ar ao mesmo tempo, no mesmo ritmo.

O abraço o violão os dedos a madeira. Deslizar apertar castigar fechar os olhos deixar. O lá bem fundo de um metal e um violão mais redondo que uma bola.

Com o Guinga, um bocado de vozes velhas, de riso sério, de gente no escuro fala: obrigada, ó mestre.

Guinga fala sobre o uso do dedo polegar nos acordes. Inspire-se AQUI.
***
         Manuel Bandeira em "Mafuá do Malungo" (1948) publica todo tipo de versos de circunstância: jogos onomásticos, réplicas e agradecimentos; panegírios e saudações. Mesmo as dedicatórias podem ser consideradas "de circunstância", o que não quer dizer "sob encomenda" porque o poema de circunstância é feito com total espontaneidade; para uso doméstico. Parecem estar ali apenas para mostrar que a poesia faz companhia ao poeta em momentos especiais para ele, mas que permanecem impossíveis de serem acessados pelos leitores do "poema" que, de tanta puerilidade, chega a ganhar aspas. Eis alguns exemplos:

Tuquinha
Você chamou Maria Helena "o anjo lindo de Tuquinha".
Na realidade você o anjo lindo de Maria Helena,
O anjo lindo de Branca,
O anjo lindo de Branquinha,
O anjo lindo de Isabel,
O anjo lindo de Manuel,
O anjo lindo de nós todos.

Reza a Deus por nós, anjo lindo: aos anjos ele atende.

          Quem conheceu pessoalmente o poeta, ou quem se dedicou a estudar a sua biografia, poderá facilmente identificar a circunstância que cercou a criação desse poema. Mas, mesmo sem saber quem é quem, pode-se desfrutar do gesto de compartilhar um momento, em que a poesia curva-se, dobra-se, reverencia algo ou alguém a ponto de contentar-se apenas com a insinuação, tal como se lê no poema abaixo:

Louvado e Prece
   Isabel querida
   — A menininha
   mais bonitinha
   mais engraçadinha
   mais bizurunguinha
que eu vi na minha vida
   — amorável
      adorável,
   a d o r á v e l !

Mas é mesmo uma menina?
    Ou será, Manuel,
    lírio da campina
botão de rosa no galho,
    ou, na manhã fria
    de abril, cristalina
    gotinha de orvalho?
    (De orvalho ou de mel?)
    Se não é um doce,
    é como se fosse.

    É mais: um anjinho
    muito seriozinho
    caído do céu
    por descuido, com
    uma bonequinha
    loura e coradinha
    nos braços. Que bom
    que é um anjo fresquinho
    caído do céu!
                   *
Rogo a Deus, nosso Senhor,
seres meu anjo-guardião:
se um dia, seja em que for,
eu cair em tentação
(sou tão grande pecador!)
peço-te que tu me salves,
salves o bardo Manuel,
         Isabel,
    — Isabel Moreira Alves.

          Apenas para não parecer que todos os poemas de circunstância de Bandeira tem Deus e anjo no meio, transcrevo mais um:

Agradecendo doces a Stella Leonardos
1. Doces de açúcar e gemas
    São teus versos, e teus doces
    Sabem a poemas: não fosses
    Toda doce em cada poema!

2. Pouco e coco rimam, sim,
    Mas quando o coco é o seu coco,
    Que, por mais que seja, é pouco
    (Pelo menos para mim!).

3. Não veio doce, mas veio
    Verso seu, que me é tão doce
    Como se doce ele fosse:
    Mais que doce: doce e meio!

***
          As crônicas de modo geral são circunstanciais. Ao que parece, porém, a relação com o tempo na crônica é diferente daquela vivida no poema de circunstância, que celebra o fugidio, o efêmero, e não se preocupa em construir nada de edificante. Uma das críticas que se faz ao Drummond-cronista é que suas crônicas tornaram-se datadas. Em muitas deles, o poeta gasta laudas e laudas para, por exemplo, comentar uma gíria ou fazer um elogio às minissaias, como se fossem novidades. O problema é que, no momento em que foram alvo da escrita do poeta, de fato a gíria e a minissaia indicavam circunstâncias  especiais. Contudo, com o decorrer do tempo, perderam o interesse. E assim Drummond, em muitas de suas crônicas, rapidamente se tornou anacrônico, sem alcançar o histórico.
          No entanto, talvez só agora, depois de ter refletido sobre a grandeza do poema de circunstância, eu  tenha sido capaz de ler o eterno nas entrelinhas do datado. Se não, vejamos:

          PELÉ:1000
          O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé. Aquele gol que gostaríamos tanto de fazer, que nos sentimos maduros para fazer, mas que, diabolicamente, não se deixa fazer. O gol.
          Que adianta escrever mil livros, como simples resultado de aplicação mecânica, mãos batendo máquina de manhã à noite, traseiro posto na almofada, palavras dóceis e resignadas ao uso incolor? O livro único, este não há condições, regras, receitas, códigos, cólicas que o façam existir, e só ele conta — negativamente — em nossa bibliografia. Romancistas que não capturam o romance, poetas de que o poema está-se rindo à distância, pensadores que palmilham o batido pensamento alheio, em vão circulamos na pista durante 50 anos. O muito papel que sujamos continua alvo, alheio às letras que ele exigia de nós. E quantos metros cúbicos de suor, para chegar a esse não-resultado!
          Então o gol independe de nossa vontade, formação e mestria? Receio que sim. Produto divino, talvez? Mas, se não valem exortações, apelos cabalísticos, bossas mágicas para que ele se manifeste... Se é de Deus, Deus se diverte negando-o aos que o imploram, e , distribuindo-o a seu capricho, Deus sabe a quem, às vezes um mau elemento. A obra de arte, em forma de gol ou de texto, casa, pintura, som, dança e outras mais, parece antes coisa-em-ser na natureza, revelada arbitrariamente, quase que à revelia do instrumento humano usado para a revelação. Se a obrigação é aprender, por que todos que aprendem não a realizam? por que só este ou aquele chega a realiza-la? por que não há 11 Pelés em cada time? Ou 10, para dar uma chance ao time adversário?
          O Rei chega ao milésimo gol (sem pressa, até se permitindo o charme de retitficar para menos a contagem) por uma fatalidade à margem do seu saber técnico e artístico. na realidade, está lavrando sempre o mesmo tento perfeito, pois outros tento menos apurados não são de sua competência. sabe apenas fazer o máximo, e quando deixa de destacar-se no campo é porque até ele tem instante de não-Pelé, como os não-Pelés que somos todos.
          O mundo é feito de consumidores, servido por alguns criadores. O desequilíbrio é dramático, e só não determina a frustração universal porque não nos damos conta de nossa impotência criadora, e até nos iludimos, atribuindo-nos uma potência imaginária. Ainda por absurdo desajuste, a criação, em muitas áreas, nem sequer é absorvida pelos consumidores em carência. Muitos seres não sabem consumir, vegetando em estado de privação inconsciente. para o consumo, sim, é necessário aprendizado. Mas os bilhões de analfabetos, subnutridos e marginalizados, dos mundos ocidental e oriental, não desconfiam sequer de que há alimentos fascinantes para fomes não pressentidas.
          Afortunadamente, no caso de Pelé, a comida de arte que ele oferece atinge o paladar de todos. O futebol é desses raros exemplos de arte corporal e mental que promovem a felicidade unânime, embora dividindo a massa de consumidores em grupos antagônicos. Antagonismo formal, pois a fusão íntima se opera em torno da beleza do gesto, venha de que corpo vier.
          Os mil gols de Pelé são um só, multiplicado e sempre novo, único em sua exemplaridade. Não sei se devemos exaltar Pelé por haver conseguido tanto, ou se nosso louvor deve antes ser dirigido ao gol em si, que se deixou fazer por Pelé, por uma dessas misteriosas escolhas que a genética ainda não soube explicar, pois a ciência, felizmente, ainda não explicou tudo neste mundo.
Extraído de O poder ultrajovem (1972)

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