7 de agosto de 2011

Tradição e talento individual (trechos)

T.S.Eliot
Um dos fatos capazes de vir à luz nesse processo [de criticar] é nossa tendência em insistir, quando elogiamos um poeta, sobre os aspectos de sua obra nos quais ele menos se assemelha a qualquer outro. Em tais aspectos ou trechos de sua obra pretendemos encontrar o que é individual, o que é a essência peculiar do homem. Salientamos com satisfação a diferença que o separa poeticamente de seus antecessores, em especial os mais próximos; empenhamo-nos em descobrir algo que possa ser isolado para assim nos deleitar. Ao contrário, se nos aproximarmos de um poeta sem esse preconceito, poderemos amiúde descobrir que não apenas o melhor mas também as passagens mais individuais de sua obra podem ser aquelas em que os poetas mortos, seus ancestrais, revelam mais vigorosamente sua imortalidade. E não me refiro à época influenciável da adolescência, mas no período de plena maturidade.
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Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos.
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Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles. A ordem existente é completa antes que a nova obra apareça; para que a ordem persista após a introdução da novidade, a totalidade da ordem existente deve ser, se jamais o foi sequer levemente, alterada; e desse modo as relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo são reajustados; e aí reside a harmonia entre o antigo e o novo.
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Num sentido peculiar, terá ele [o poeta] também a consciência de que deve inevitavelmente ser julgado pelos padrões do passado. Eu disse julgado, não amputado, por eles; julgado não para ser tão bom quanto, ou pior ou melhor do que o morto; e decerto não julgado pelos cânones de críticos mortos.
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Alguém disse: "os escritores mortos estão distantes de nós porque conhecemos muito mais do que eles conheceram". Exatamente, e são eles aquilo que conhecemos.
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Estou cônscio de uma objeção habitual àquilo que claramente faz parte de meu programa para o métier da poesia. A objeção é que a doutrina requer uma ridícula soma de erudição (pedanteria), alegação que pode ser rejeitada se recorrermos às vidas de poetas de qualquer panteão. Isso equivaleria a afirmar que uma grande cultura debilita ou perverte a sensibilidade poética. [...] Shakespeare adquiriu mais noções básicas de história nos textos de Plutarco do que maioria dos homens poderia ter adquirido em todo o Museu Britânico. O fundamental consiste em insistir que o poeta deva desenvolver ou buscar a consciência do passado e que possa continuar a desenvolvê-la ao longo de todo a sua carreira.
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 O efeito de uma obra de arte sobre a pessoa que dela desfruta é uma experiência distinta em espécie de qualquer outra que não pertença ao campo da arte. Ela pode ser formada a partir de uma emoção, ou resultar da combinação de muitas; e vários sentimentos, inerentes para um escritor a palavras, frases ou imagens, podem ser acrescentados para compor o resultado final. Ou a grande poesia pode ser escrita sem o emprego direto de emoções, sejam elas quais forem, isto é, composta sem qualquer recurso aos sentimentos.
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Não é em suas emoções pessoais, as emoções induzidas por episódios particulares em sua vida, que o poeta se torna, de algum modo, notável ou interessante. Suas emoções particulares podem ser simples, ou rudes, ou rasas. Em sua poesia, a emoção será algo de muito complexo, mas não com a complexidade das emoções de pessoas que revelam em vida emoções muito complexas e inusuais. Na verdade, há um erro de excentricidade em poesia que deve ser creditado à busca de novas emoções humanas a serem expressas; e nessa busca da novidade em lugares errados aflora o perverso. O objetivo do poeta não é descobrir novas emoções, mas utilizar as corriqueiras e, trabalhando-as no elevado nível poético, exprimir sentimentos que não se encontram em absoluto nas emoções como tais. E emoções que ele jamais experimentou servirão, por sua vez, tanto quanto as que lhe são familliares.
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Há um punhado de coisas nos textos poéticos que devem ser conscientes e deliberadas. Na verdade, o mau poeta é habitualmente inconsciente onde deve ser consciente, e consciente onde deve ser inconsciente. Ambos os erros tendem a torná-lo "pessoal". A poesia não é uma liberação da emoção, mas uma fuga da emoção; não é a expressão da personalidade, mas uma fuga da personalidade. Naturalmente, porém, apenas aqueles que têm personalidade e moções sabem o que significa querer escapar dessas coisas.
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A fusão dos elementos emocionais e sensíveis - Eliot e Dante
          Em certo trecho do artigo "Tradição e talento individual", Eliot cita o Canto XV do Inferno de A Divina Comédia de Dante, e comenta a sua última quadra. Os quatro versos, diz ele, mostram um sentimento só perceptível pela apreensão da imagem usada pelo poeta. Ou seja: não há divisão entre sentimento interno e sensibilidade em relação ao externo. Ambos acontecem juntos. A imagem escolhida por Dante, prossegue Eliot, "provavelmente se encontrava suspensa na mente do poeta onde ficam incorporadas frases, sentimentos, imagens que ali pairam até que todas as partículas tornam-se capazes de se unir para formar um novo composto".
          Dante escreve a "Divina Comédia" na 1a pessoa e o tempo inteiro se reporta a um desejo seu, a uma experiência sua. Mesmo assim não se pode dizer que sua literatura é pessoal. Em 1265, não existia a subjetividade como fruto da modernidade, pelo banimento do morto em favor de um presente sempiterno e controlável pelo sujeito. O que Dante mostra é o embate de um poeta vivo em busca de um mundo morto. De um lado, encontra-se a eternidade; de outro, a temporalidade. Pela amálgama das duas, o poeta forja a língua italiana.
          O Canto citado por Eliot se passa no Círculo sétimo, o dos sodomitas que, "sob o fogo, se moviam incessantemente". Ali, ao reencontrar seu antigo mestre Bruneto Latino ou Brunetto Latini, o poeta proclama:
Viva em minha lembrança se demora
o caro e grato vulto teu paterno,
quando a mim, lá em cima, hora por hora,

mostravas como ser se torna eterno;
e quanto em nosso mundo te prezei,
em tom proclamarei atento e terno.

          Pesquisando um pouco mais o sentimento aí contido, deparamo-nos com a relação histórica entre a pedagogia e a pedofilia. O tratamento do tema foge completamente ao escandaloso. No site de Giovanni Dall'Orto, lê:
            Dante tratta Brunetto con tale deferenza (arrivando a indicarlo come il suo maestro intellettuale) che generazioni della Comedia si sono scandalizzate: com'era possibile che una persona colpevole del più sozzo di tutti i peccati fosse trattata con tale rispetto nell'Inferno?
            La risposta è, come correttamente sottolinea l'Enciclopedia dantesca*, che Dante è figlio d'un'epoca in cui la sodomia era per la morale religiosa un peccato gravissimo, ma per la morale laica non era altrettanto grave: fu solo durante l'ultima parte della vita di Dante che la morale laica cambiò al punto che i Comuni italiani approvarono le prime leggi che punivano con la morte la sodomia.
* Enciclopedia dantesca, Istituto dell’Enciclopedia Italiana - Treccani, Roma 1976, vol. 5, pp. 285-287.
 
          Apesar de Eliot não estar preocupado com essa questão, mais apropriada a uma crítica baseada em  Estudos Culturais, esse dado "acessório" corrobora para sua visão de que "padrões do passado" permanecem como fonte de questionamento em relação ao presente. De volta aos elementos literários especificamente (será possível isolá-los dos valores culturais?), voltemo-nos para a última quadra do canto XV, tal como sugerido por Eliot:

Partiu, ligeiro, como os que correndo
vão, no campo, em Verona, o pálio verde,
e veloz, como ia, parecendo
mais o que vence a prova que o que a perde.

Tradução de:
Poi si rivolse e parve di coloro
che corrono a Verona il drappo verde
per la campagna. E parve di costoro
quelli che vince non colui che perde


          Parece que realmente havia em Verona uma corrida conhecida como "corsa del drapo verde". Dante viveu lá quando exilado de Florença. Até hoje acontece uma "corsa del palio", em Siena. O pálio verde era uma espécie de manto para que a população pudesse identificar o vencedor dentre aqueles que corriam a pé e nus, segundo a história da corrida (cf. WorldwideRunning). O que importa sublinhar, no entanto, é a combinação de todos esses dados com a emoção de Dante. Essa está posta não pela intensidade das palavras que poderiam expressá-la de modo explícito e óbvio. O que conta é a intensidade do processo artístico, diz Eliot, "a pressão", por assim dizer, sob a qual ocorre a fusão.
          Para quem quiser continuar a pesquisa e leitura do Dante, Eliot cita ainda os cantos V (episódio de Paolo e Francesca) e o XXVI (encontro com Ulisses) como exemplares para a compreensão da força de artista ao fundir elementos.
Os versos aqui incluídos foram retirados da edição integralmente traduzida, anotada e comentada por Cristiano Martins. Itatiaia / USP, 1979.


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