9 de outubro de 2011

Genialidade

Patricia Fucci
          Martim Martinez era um menino pobre, nascido e criado numa estância no sul do Uruguai. Filho de um lavrador e de uma cerzideira passou a infância a correr a relva ribeirinha e a acompanhar o gado, montado a pelo nos cavalos do patrão.
          Sua inteligência era tão plena que se fazia independente. Avançava e muito a idade e o corpinho franzino de guri. Quando lhe vinha a clarividência, não sabia como dar conta, então contava tudo, as pedras, os passarinhos, as folhas do caminho.
          Martim não poderia sabê-lo, mas via o mundo com outros olhos e o escutava com outros ouvidos.
          Os barulhos da natureza tornavam-se musicais para ele. O gotejar de uma folha, o coaxar dos sapos, o ruído da força da correnteza dos rios arranjavam-se em sua cabeça como uma sinfonia.
          Também a escrita não lhe era indiferente. Não havia trecho de livro ou leitura de qualquer espécie que não reorganizasse, substituindo palavras, invertendo parágrafos, às vezes até suprimindo algum elemento, de modo a lhe parecer mais harmônico.
          Não tardou para que um fazendeiro abastado do lugar, ao corrente da existência do menino superdotado, tratasse de levá-lo para o mundo, a fim de propiciar-lhe educação adequada às suas capacidades.
          Entretanto, a extensão de seus conhecimentos, ao invés de lhe acalmar o gênio, tornaram suas peculiares interferências no mundo cada vez mais complexas.
          Não raro era visto caminhando pelos corredores da universidade a reger, com movimentos frenéticos, uma orquestra imaginária. Nas páginas dos livros encontrados no seu dormitório, as palavras eram riscadas e reescritas de forma ilegível, muitas vezes com as ilustrações alteradas.
          Martim habitava a solidão que transpunha o coração e penetrava a alma, vivendo cativo em sua alienação, acorrentado ao pleno absurdo. Porém foi chegado o dia em que a angústia do gênio transcendeu a condição humana e libertou Martim, que voltou a ser menino, pastor de seus próprios rebanhos, descalço na natureza, de alma lavada.
Theodor Galle (1571–1633) [?] - Cultivo de horta (detalhe)

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