27 de outubro de 2011

Odisseu em Hades

Extraído do Canto XI da Odisséia de Homero, trad. Jaime Bruna
William Turner
           Depois de invocar com votos e preces as nações dos mortos, peguei as reses, degolei-as sobre a cova, e o sangue de negros vapores correu.
          Aglomeraram-se, então, subidas do Érebo, as almas das pessoas mortas. Era, donzelas, moços solteiros, velhos sofridos, virgens puras com o primeiro luto no coração; muitos eram os feridos pelas espadas de bronze, mortos em combate, com suas armaduras tintas de sangue. Chegavam incontáveis, de toda parte, e apinhavam-se em redor da cova, ululando prodigiosamente, e um pálido terror se apossou de mim. 

           [...] Veio em seguida a alma de minha falecida mãe, Anticléia, filha do altivo Autólico; eu a deixara viva quando parti para a Ílio sagrada. Ao vê-la chorei e senti pesar em meu coração; contudo, a despeito de minha dor profunda, não permiti que se aproximasse do sangue antes de eu consultar a Tirésias.
           Veio depois dela a alma do tebano Tirésias; trazia um cetro de ouro; reconheceu-me e disse:
          Filho de Laertes, progênie de Zeus, engenhoso Odisseu, por que vieste, ó desditoso? Por que deixaste a luz do sol, para veres defuntos e um lugar desprazível? Eia, arreda-te da cova e recolhe a adaga acerada, para que eu possa beber do sangue e revelar-te a verdade.
          Assim falou; eu me arredei, embainhando a adaga tauxiada de prata. O impecável adivinho, depois de sorver o escuro sangue, dirigiu-me estas palavras:
          Procuras, glorioso Odisseu, um regresso doce como mel; um deus, porém, to fará penoso; não creio que te esqueça o deus que a terra estremece; ele te guarda rancor no coração, encolerizado por lhe teres cegado o filho dileto. Não obstante, embora sofrendo desgraças, poderás lá chegar, se te dispuseres a conter tua sofreguidão e a dos companheiros, quando aproximares teu bem construído barco da ilha Trinácia, escapando do mar violáceo, ao encontrares no pasto as vacas e nédias ovelhas de Hélio, que tudo do alto vê e tudo escuta. Se as deixares intactas e cuidares de teu regresso, ainda chegareis a Ítaca, a despeito de sofrerdes reveses; caso, porém, as saqueies, então te predigo o fim do barco e da tripulação; se tu mesmo escapares, chegarás, tardio e humilhado, perdidos todos os companheiros, a bordo de barco estrangeiro; encontrarás tribulação em casa homens estróinas, que devoram teu sustento, pretendendo a mão de tua divina esposa, a quem oferecem presentes. [...] 


          Assim falou ele e eu lhe disse em resposta:
          Tirésias, foram os próprios deuses, creio, que teceram assim meu futuro. Eia, porém, dize-me uma coisa, falando sem rebuços; estou vendo presente a alma da minha falecida mãe; ela está sentada em silêncio perto do sangue; não teve, porém, ânimo de encarar o seu filho e conversar com ele. Dize, príncipe, qual o meio de ele poder reconhecer em mim quem sou?
          Assim falei e ele prontamente me disse em resposta:
          ― Não me custará dizê-lo de modo que compreendas. Toda aquela, dentre as almas dos mortos, que deixares chegar perto do sangue te fará vaticínios verazes, mas, se a alguma o recusares, essa tornará atrás.

***
PARÓDIA OU RECONTO?

Filho, aproxima de mim este cálice
barto-li
O sangue do sacrifício escorreu dos lábios da mãe de Ulisses. Ela precisava desse alimento para falar com o filho. Ah! que delícia. Saciada ela contou todas as fofocas de Ítaca. Você nem imagina o que aconteceu na sua ausência. Depois de muito ouvir, Ulisses ouviu mais porque sua mãe chamou as amigas para compartilharem do chá de sangue. Ulisses não pôde negar. Uma a uma elas passaram. Mas nosso herói não ficou cansado de ouvir espíritos. Ei, vocês poderiam me chamar o Tirésias? Eu quero ouvir o velhote vidente. Ele é cego, Ulisses. E daí? O homem vê coisas que ninguém vê. Lá isso é verdade. Aqui em Hades, ele é o cara. Tirésias chegou e bebeu um copão de sangue. Hum. Quero mais. O cara aproveitava da sua condição de fofoqueiro-mor. Depois de uns dez copos, Tirésias soltou o verbo. Ulisses, meu caro, você vai se dar mal. E toca a dar má notícias. Chega, chega, Tirésias. Xô, mau agouro.

***
Tirésias, o guia cego, é um personagem fascinante. Transitando pelos gêneros, pelos territórios, ele dá margens a várias recriações. No cinema, o Stalker, de Tarkovsky, é considerado uma dentre as diversas variantes de personagem tiresiano. De fato, o personagem-título oferece aos interessados uma passagem segura pela Zona para que eles possam entrar no Quarto - lugar onde os mais recônditos desejos dos visitantes serão atendidos. No filme, o Stalker leva um cientista e um escritor até o limiar do Quarto. A discussão que acontece ali (neste filme, é o diálogo que acontece) faz a gente pensar  no quanto a ciência e a arte às vezes podem ser tão estúpidas diante da simplicidade na vida.

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