30 de setembro de 2012

Mário Cesariny - dois poemas e um texto sobre imaginação do seu "Manual de prestidigitação"

história de cão

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós nào há memória

dos lados não ficou nada

Só a imaginação transforma. Só a imaginação transforma. É imaginação o livre exercício do espírito que servindo-se de um ou mais aspectos do "real" passa lenta ou rapidamente ao extremo limite deste para alcançar, pouco importa em que margens, o objecto real de um irreal conquistado no espírito. Acelerar este processo levando-o a um ponto em que se torne impossível falar de real e irreal (negação da negação anterior), produzir um objecto onde tudo, simultaneamente, tem as propriedades da verdade e do erro, da razão e da loucura, do que foi encontrado e do que foi perdido, é transformar a realidade depois de a haver transtornado - é fixar, violentando a realidade "presente", um novo real poético (uno). Esse real poético dá-o o surrealismo, reunindo, até hoje insuperavelmente, Apolo e Dionisos, Vênus Urânia e Vênus Anadiômena, Ocultismo e Magia.
***
mágica
É uma estrada no céu silenciosa
um anão sem ninguém que o suspeite
é um braço pregado a uma rosa
um mamilo escorrendo leite
São edênicos anjos expulsos
sonhando quietude e distância
são homens marcados nos pulsos
é uma secreta elegância
São velhos demônios ociosos
fitando o céu bailando ao vento
são gritos rápidos, nervosos
que destróem todo o pensamento
É o frio deserto marinho
operando na escuridão
é o corpo que geme sozinho
é a veia que é coração
São aranhas jovens, pernaltas
arrastando embrulhos para o mar
são altas colunas tão altas
que o chão ameaça estalar
São espadas voantes são vielas
passeios de todos e nenhuns
são grandes rectas paralelas
são grandes silêncios comuns
É uma edição reduzida
das aras da história sagrada
é a técnica mais proibida
da mágica mais procurada
É uma estrada no céu silenciosa
por um domingo extenso e plácido
é um anoitecer cor-de-rosa
um ar inocente, ácido

10 de setembro de 2012

"Da arte das armadilhas", poemas de Ana Martins Marques

Esta foi uma poeta que descobri há pouco. Uma mineira que nasceu em 1977.
Ela tem algo a ver com a Fernanda Takai, do Pato Fú.
Faz uma poesia sussurrada, no limite do silêncio.

Lado a lado
d'après Anna Akhmátova

Andamos juntos
lado a lado
mas sem nos tocar

os passos repetiam
os círculos
do jardim público

as coisas nas vitrines
as coisas que dissemos

naviforme
a lua
por cima

tantas vezes
ensaiamos a partida

mas nunca fomos bons
de despedida

***
Teatro

Certa noite
você me disse
que eu não tinha
coração

Nessa noite
aberta
como uma estranha flor
expus a todos
meu coração
que não tenho

 ***
Cinema

Encontramos na rua
uma fileira de cadeias
de um velho cinema
levamos pra casa
colocamos na varanda
passamos toda a tarde
bebendo e fumando
assistindo passar
um dia qualquer

 Ana Martins Marques

29 de agosto de 2012

DEPOIMENTO: DESPEDIDA DO CONDOMÍNIO SANTA LEOCÁDIA

ANGELA BRANCANTE CARRAZEDO 
psicanalista / arte terapeuta
STA. LEOCÁDIA – AP.17

________________________________________

Moro no Condomínio Santa Leocádia desde 1983 – morei em vários apartamentos – 11, 17, 23 e 17 novamente. Era permitido aos moradores trocar de apartamento de acordo com a necessidade – de um menor para um maior, ou de um maior para um menor.

Pensei que minha morada em Santa Leocádia seria eterna, mas com grande tristeza, fui surpreendida pelos últimos acontecimentos e me dou conta de que tenho de começar a me despedir deste lugar que amo tanto.  

Me despeço do bondinho que nos transporta para este espaço mágico e encantado casulo verdejante, longe do asfalto de Copacabana.
  
Me despeço  do cheiro desta floresta, dos pássaros, das borboletas azuis, dos macaquinhos que nos visitam todos os dias, das dezenas de gatos que criei, do silêncio, e da paz deste lugar onde posso hibernar do mundo.

Me despeço de todas as lembranças pitorescas que vivi "neste lugar fora do mundo" uma gambá entrou em minha casa e seus filhotes vieram atrás, estavam todos embaixo da mesa da televisão; coloquei uma ponte de madeira entre minha janela e uma árvore para os gatos poderem entrar e sair, um dia um gato trouxe um filhote de macaco na boca, ele caiu da árvore, consegui devolve lo para sua mãe – macaca... e muitos outras lembranças!

Me despeço de minha casa colorida, onde por amor aos gatos criei o “Atelier do Gato: A Casa do Gato” – objetos para quem ama gatos!

Me despeço deste lugar mágico que me acolheu nos melhores e piores momentos de minha vida.

Me despeço deste lugar e de minha casa, como quem se despede de uma pessoa muito querida!

De repente, não mais que de repente eu e mais 29 pessoas recebemos uma carta - Santa Leocádia foi vendida... terão 30 dias para deixarem seus imóveis.... expulsos do paraíso!
http://www.facebook.com/condominiosantaleocadia?filter=1

Como psicanalista, trabalhando com afetos e desafetos ...não compreendi bem este “tratamento”! Quem somos? Peças de um jogo de xadrez? Vendeu – comprou – saiam!
 
Para além do que possa acontecer em nossas vidas humanas, temos enorme preocupação quanto ao que será feito deste lugar – “ jóia histórica preciosa” construída na década de 20.

Qual será o destino do Condomínio Santa Leocádia?

Em junho, com as fortes chuvas muitas árvores desabaram – seria o prenúncio de um acontecimento eminente? Será Santa Leocádia “sacrificada” em nome da Copa 2014????

Estaremos diante do início da construção de CIDADESHUMANAS???

14 de julho de 2012

Três posfácios para a história do Barba Azul

A história do Barba Azul foi contada por Charles Perrault em 1695. Dizem que o personagem foi inspirado num assassino em série, famoso na França renascentista: Gilles de Rais.
Se você não conhece ou já esqueceu da história, navegue um pouco pela internet. Facilmente, reaparecerão a doce Judite, as suas irmãs, o convite do Barba Azul para alguns dias de diversão e o mistério que pairava sobre a cabeça desse homem feio.
Como desapareceram as suas ex-esposas?
Leonora não conseguia entender e, fascinada por aquele homem tão poderoso, resolveu casar com ele. Depois disso, vem o episódio da proibição feita pelo marido antes de viajar. Tudo era permitido e muito havia para usufruir, só um quarto lhe era interdito. Mas o homem entregou todas as chaves para a moça, inclusive a do quarto fatídico. Claro que ela foi lá conferir.
A descrição do cenário de horror que encontrou perturba o sono de qualquer leitor. Cadáveres de mulheres pendiam das vigas. O chão tinha tanto sangue que a chave caiu e ficou manchada. A mulher ainda tentou limpa-la mas a danada da chave era encantada e o sangue não saía de jeito nenhum.
A cena final dá medo. O marido chega e descobre tudo. Ameaça mata-la.
A moça pede um tempo para rezar...

– Dou-lhe meio quarto de hora – replicou Barba-Azul – e nem um momento a mais.
Quando ela se viu sozinha, chamou a irmã e disse-lhe:
– Minha irmã, sobe ao alto da torre, eu te suplico, para ver se meus irmãos não vêm; eles me prometeram que me viriam ver hoje, e, se os vires, faze-lhes sinal para que se apressem.
A irmã subiu ao alto da torre, e a pobre aflita gritava-lhe de vez em quando:
– Ana, minha irmã, não vês ninguém?
E a irmã respondia:
– Não vejo nada a não ser o Sol que brilha e a erva que verdeja.
Entrementes, Barba-Azul, com um grande cutelo na mão, gritava para a esposa com toda a força:
– Desce depressa, ou eu subirei aí.
– Mais um momento, por favor –, respondia-lhe a mulher. E logo, baixinho:
- Ana, minha irmã, não vês ninguém?
E a irmã Ana respondia:
– Não vejo nada a não ser o Sol que brilha e a erva que verdeja.
– Desce depressa – bradava Barba-Azul –, ou eu subirei aí.
– Já vou – respondeu a mulher. E depois:
– Ana, minha irmã, não vês ninguém?
– Só vejo – respondeu a irmã Ana – uma grossa poeira que vem desta banda.
– São meus irmãos?
– Infelizmente não, minha irmã; é um rebanho de carneiros.
– Não queres descer? – bradava Barba Azul.
– Mais um momento – respondia a mulher.
E depois:
– Ana, minha irmã, não vês ninguém?
– Vejo – respondeu ela – dois cavaleiros que vêm deste lado, mas ainda estão muito longe… Louvado seja Deus! – exclamou um instante depois. –- São meus irmãos; estou lhes fazendo sinal, tanto quanto me é possível, para que se apressem.
Barba Azul pôs-se a gritar tão alto que a casa estremeceu. A pobre mulher desceu e atirou-se-lhe aos pés, desgrenhada e em prantos.
- Isto não adianta nada – disse Barba Azul. – Tens de morrer.
Em seguida, segurando-a com uma das mãos pelos cabelos e erguendo-a com a outra o cutelo no ar, ia cortar-lhe a cabeça. A pobre mulher, voltando-se para ele, rogou-lhe que lhe concedesse um breve momento para se recolher.
- Não, não – disse ele –, e encomenda bem tua alma a Deus.
E ergueu o braço… Neste momento bateram à porta com tanta força que Barba Azul se deteve instantaneamente. Abriram e logo se viu entrar dois cavaleiros que, sacando da espada, correram direto a Barba Azul.
Ele reconheceu que eram os irmãos da esposa, um deles dragão e o outro mosqueteiro, e fugiu sem demora para salvar-se; mas os dois irmãos o perseguiram tão de perto que o alcançaram antes que ele pudesse atingir a escada externa. Atravessaram-no a fio de espada, e o deixaram morto. A pobre dama estava quase tão morta quanto o marido, nem lhe restavam forças para beijar os irmãos.
Verificou-se que Barba-Azul não tinha herdeiros, razão por que sua mulher se tornou dona de todos os seus bens. Empregou parte deles no casamento de sua irmã Ana com um jovem fidalgo, que a amava desde muito tempo; outra parte na compra do posto de capitão para seus dois irmãos, e o resto no casamento dela própria com um homem muito distinto, que lhe fez esquecer o mau tempo que ela passara com Barba Azul.
Marion Cito e Jan Minarik in Bluebeard, Tanztheater Wuppertal Pina Bausch, 1984. Foto: Ulli Weiss

***
Posfácio 1
                                                                                       Renata Figueiredo
          A viúva do Barba Azul passeava feliz e encantada com seu novo amor pelo jardim do castelo.  Seu novo marido era carinhoso, amoroso, tão belo física quanto interiormente. Cabelo castanho claro, olhos azuis esverdeados e pele rosada, um verdadeiro galã. Calmamente,  de mãos dadas, sem destino, eles contemplavam o momento com sorrisos, abraços, beijos e muito carinho.
          Com seus cabelos soltos e compridos, ao vento, vestido longo e de pés no chão, de vez em quando a viúva dava umas corridas pela grama macia. Chegava na beira do lago, molhava os pés e via seu reflexo no espelho d’água. Sorriso frouxo e gargalhadas altas e descompromissadas, como de uma criança, deixava sair toda a sua felicidade do momento.
        Ele a observava meio abobalhado com tanta beleza e pureza. E sonhava infinitamente com tantas coisas que estariam por vir. Mal conseguia se conter, ao ponto de fortuitamente deixar lágrimas escorrerem pelo seu rosto. Ela, delicadamente as enxugava e lhe beijava as faces com os lábios molhados de amor.
        Nas margens do lago, deitados, ficaram um sem tempo observando o azul do céu e o movimento das nuvens. Brincavam de descobrir figuras nos formatos das nuvens no céu.
      Cansados já com tantos sonhos, abraçaram-se e acabaram adormecendo.  O céu começou a mudar de cor com o entardecer, ficando vermelho cor de fogo. De longe, uma cena de cinema: o casal com todo aquele cenário ao seu redor. Uma foto merecia ser tirada para registro do flash de vida.
     As crianças em casa já se preocupavam e estavam irrequietos com a demora do passeio dos pais. Eram quase seis horas e a hora do jantar se aproximava. Os empregados resolveram então, sair a procura dos dois, deixando que as crianças continuassem a brincar de espada em seu lugar predileto, a torre mais alta da casa. Ao abrirem a porta do castelo viram que ameaçava chover, o tempo tinha fechado, e voltaram para pegar as sombrinhas. Sofie, a governanta mais antiga da casa foi a procura do molho de chaves para pegar a chave da chapeleira, quando se deparou com a chave ensanguentada do quarto proibido que a patroa lhe havia proibido de usar. Ficou uns segundos com ela na mão observando-a e acabou por guardá-la novamente. Pegou a chave do armário e assim que o abriu se surpreendeu com a arrumação dos chapéus pendurados na parede. Todos lindos, um para cada morador do castelo. Pegou os que achou mais bonitos, o florido para a dama, e o xadrez para o cavalheiro. Saíram a procura do casal.
      Depois de uma longa caminhada, avistaram os apaixonados dormindo no gramado.  Ficaram com pena de acorda-los, e ficaram ali parados. Sentaram um pouco distantes, sem saber o que fazer. E o tempo foi passando...
       Foi quando começou uma tempestade. O susto foi grande com o barulho dos trovões e tal foi a quantidade de água que, rapidamente, os dois acordaram e se levantaram correndo em direção ao castelo.
     Os empregados foram ao seu encontro para oferecerem os guarda-chuvas. Mas, o casal se entreolhou e com cúmplices olhares dispensou  as umbrelas, pondo-se a correr e a cantar I’m singing in the rain. E assim, continuaram felizes para sempre com seus cinco filhos! A família tão planejada.

  
***
Posfácio 2
Maria Tereza Albernaz
          Já estou casada de novo há dois anos e ainda sinto calafrios quando penso no que poderia ter acontecido comigo. Traí a confiança de Barba Azul e a punição seria cruel caso meus irmãos não tivessem chegado a tempo para interromper a fúria de meu marido.
          Hoje o homem com quem vivo me cerca de carinho e atenção. Não faltam luxo e riqueza ao meu redor. 
          Confesso que a morte de Barba Azul ainda me pesa um pouco e não posso afirmar que sinto alívio por não ter sido eu a condenada. Procuro as razões para as atitudes violentas que provocaram a barbárie no castelo e não encontro. O que pode ter levado uma pessoa tão sensível a se transformar em um monstro sanguinário? O que terá acontecido no seu passado? Macabro mistério!
          Entrei no único quarto proibido entre tantos outros cômodos abertos. Não tolero ordem sem explicação. Poderia ter discutido com Barba Azul. Este foi meu erro. Agi escondido. 
          Enfim... esta história contrariou dois ditos populares: curiosidade, afinal, não mata. E, saber não é poder. Mesmo conhecendo os segredos do castelo, nada foi suficiente para salvar Barba Azul.
 
Charles Ludlam e Lohr Wilson em Bluebeard. Foto: Leandro Katz.
 
***
Posfácio 3
Ruth Lifschits
          Leonora se salvou mas seu “e viveu feliz para sempre” custou um pouco a acontecer.     
          É certo que seu marido mau tinha sido eliminado e ela estava rica. Herdara a fortuna do Barba Azul: o magnífico castelo e seus tesouros e riquezas. Vivia cercada de esplendorosos jardins, bosques a perder de vista e o canto dos mais belos pássaros. E um novo marido tão pacífico, calmo e  previsível quanto o cenário que a rodeava.
          Sua vida  entrara em solene monotonia. Leonora sentia-se morrer dia após dia.  
          - Não posso continuar assim.   
      Inquieta, resolveu caminhar um pouco, para mover sua energia. Perambulou pelo castelo, entrando e saindo dos cômodos sem se fixar em nada, passando os olhos por tudo: teto, chão, paredes. Ambientes perfeitamente limpos e decorados. Foi quando, em uma saleta menor, algo brilhou e prendeu seu olhar. Aproximou-se de uma bela escrivaninha  de pau marfim com lindos entalhes em castanheira, negros e acetinados, e viu a chave daquele quartinho proibido, aquela que quase a levara à morte.  
       A peça dourada brilhava iluminada por um raio de luz que incidia  unicamente sobre ela. Leonora olhou ao redor, viu que  as cortinas estavam cerradas. Não havia como a luz natural entrar dentro do cômodo e muito menos chegar até aquele cantinho retirado. Lá fora caía uma chuvinha fina, típica das manhãs nubladas da primavera.    
          Ela não acreditava no que via e não conseguia tirar os olhos do objeto luminoso. De repente foi tomada pelas imagens que vira no dia em que entrara no  quarto proibido - as poças de sangue, os corpos das mulheres degoladas e penduradas nas vigas do teto. Tremeu dos pés à cabeça, a cena era demasiadamente forte.  
         Mas, algo de bom surgiu das sensações sentidas. Uma forte vibração percorreu todo o seu corpo enchendo-a de uma nova energia. Pegou a chave e viu que   já não havia  mais nenhuma mancha de sangue nela, “alguém a limpou?! Eu não consegui!”. 
        Leonora correu para as escadas do final do corredor, descendo-as de dois em dois degraus, em grande pressa, até chegar ao pequeno quarto que permanecia trancado. Sem fôlego, mas com mão firme, abriu a porta e se deparou com um espaço arrumado, impecável. Não havia um pingo de sangue à vista e nenhum  corpo degolado em qualquer viga do quartinho. Ficou ainda mais intrigada. 
        O resto do seu dia foi difícil, não conseguia se concentrar em nada. Resolveu se retirar bem mais cedo do que costumava. 
       E teve uma noite de sonhos, nos quais a chave a levava aos  lugares  mais incríveis que se possa imaginar. Foi tomada por prazeres jamais sentidos, provou o proibido do proibido. Acordou muito bem disposta, de faces rosadas e olhos brilhantes.
       - Amado esposo, convido-o a  tomar o café da manhã comigo na  ante-sala dos meus aposentos, foi logo dizendo assim que deu de cara com o senhor seu marido. 
      Ordenou à criada que os servisse lá. Conversaram longamente – ela muito falante, ele sempre com pouco a dizer, limitando-se a balançar a cabeça afirmativamente de tempos em tempos. Em determinado momento, Leonora se levantou, sussurrou algo em seus ouvidos e os dois saíram juntos para os fundos da casa. 
       Foi a última vez em que foram vistos juntos. 
      No dia seguinte, Leonora conseguiu algumas lágrimas nos olhos ao revelar uma carta despedida, na qual o marido explicava suas razões para abandoná-la e lhe pedia perdão.  
      O incidente rapidamente virou esquecimento. Sem espantos e sem espantados, a vida no castelo voltou à  rotina. 
    Mas Leonora rejuvenesceu. Passou a dar festas com frequência. Dançava, ria  e flertava abertamente com seus admiradores, sem se comprometer com nenhum deles. Foram tempos alegres e felizes, regados a bons vinhos, mesas fartas e muita diversão.  
       E assim o tempo passou. Leonora viveu uma longa vida de estimulantes sonhos, sempre  bonita e radiante, com a chave do pequeno quarto pendurada ao pescoço e um eterno sorriso misterioso nos lábios.
 
***
Mil e um Barbas Azuis

Na obra de Stephen King, The Shining ("O iluminado", 1977), a história do Barba Azul é recontada por Jack Torrance, o protagonista. O filme baseado na história foi lançado em 1980, dirigido por Stanley Kubrick e protagonizado por Jack Nicholson.
Os livros de Neil Gaiman, Smoke and Mirrors e Fragile Things, trazem histórias baseadas no Barba Azul, na verdade em Mr. Fox, personagem da literatura inglesa, falsamente acusado de matar a sua esposa.
A autora parte da história do Barba Azul para escrever os contos neste livro. São memórias de infância, o envelhecimento  dos pais, e as crueldades entre homens e mulheres.
Andrew Lang (1844–1912) coletou e publicou numa série de 10 livros inúmeros contos de fada. O Barba Azul saiu na livro azul (cada volume tinha uma cor). Num tempo em que este era um gênero pouco valorizado, o trabalho de compilação foi fundamental para disseminar histórias há muito perdidas na memória.
Esta ópera de Béla Bartók estreou em 1918. O libreto, do poetá húngaro Béla Balázs, focaliza a história de uma das esposas mortas por Barba Azul, Judite, que tenta entender a natureza de seu marido e lhe pede que as portas do castelo sejam abertas. São sete aposentos: a câmara de torturas, um jardim e um lago de lágrimas... No último, ela é assassinada.
Barbe-bleue (1866) é também uma ópera bufa de Jacques Offenbach, com livreto de Henri Meilhac e Ludovic Halévy
A música saiu em single em 1994. Alguns versos dizem:
Você é o homem certo para mim? / Você está seguro? / Você é meu amigo? / Ou você é tóxico para mim? / Você trairá minha confiança?
Editado em 1982, o romance gira em torno de Felix Schaad, médico de Zurich, de 54 anos, acusado de estrangular Rosalinde Zogg, uma garota de programa e sua sexta mulher. A história foi adaptada para o teatro.
No filme de Claude Chabrol, Landru, o pai de quatro crianças, procura mulheres nos jornais de Paris, para seduzi-las e mata-las, de modo a alimentar sua família.
Neste filme de 1947, pela primeira vez, Charlie Chaplin não faz o vagabundo. Depois da Segunda Guerra, ele volta como um serial killer. A inocência mostra o quão monstruosa pode ser.
Neste livro de 1979, a autora retrata a questão do feminino e da transgressão, com foco na sexualidade sado-masoquista.
Viúvo de sua segunda mulher, Rabo Karabekian escreve um diário em sua mansão em Long Island, onde guarda a maior coleção de pinturas abstratas e expressionistas do mundo. Na praia, ele encontra Circe Berman, que sob o pseudônimo Polly Madison, é autora de muitas novelas populares para adultos. Esta mulher formidável irá reorganizar a vida de Karabekian, mas ele tem um segredo: uma porta fechada.
Comédia de 1938, baseada numa peça francesa de Alfred Savoir. O roteiro foi escrito por Billy Wilder e Charles Brackett.   

18 de junho de 2012

Literatura problemática -- Literatura Gratuita

Ernesto Sábato
                    problema                      jogo
                    vida                              palavras
                    acento metafísico        acento estético
                    preocupação                indiferença
                    despojamento              pompa
                    espírito combativo       espírito cortesão
***
Quando escrevemos, navegamos de um termo a outro sem necessariamente uma lógica: da preocupação ao jogo; do despojamento às palavras; da vida ao espírito cortesão, assim por diante. (Bia Albernaz)

Flaubert, patrono dos objetivistas!

Ernesto Sábato
        O público francês já esperava essa espécie de Cervantes que fizesse com o romantismo indigesto dos romances de amor o que aquele fizera com a novela de cavalaria. E Flaubert se dispôs ao sacrifício, não apesar de ser ele mesmo um romântico, mas justamente por isso, como um místico pode pôr uma bomba numa igreja pervertida.
       Assim surge um dos mal-entendidos mais pertinazes do romance: a objetividade. Tão pertinaz que o Nouveau Roman proclama que Flaubert é seu patrono. Que essa ilusão se propagasse aos sofisticados narradores da Paris atual, isso sim que é divertido. Mas é certo que os erros costumam ser mais pertinazes do que as verdades.
        Pobre Flaubert. O homem dizia "mes personnages imaginaires m'affectent, me poursuivent, ou plutôt, c'est moi que suis en eux"[Minhas personagens imaginárias me comovem, me perseguem, ou melhor: sou eu que estou nelas].
       Além do mais, o criador está em tudo, não somente em seus personagens: ele escolheu esse drama, essa situação, essa cidade, essa paisagem. E quando escreve: "Quant au souvenir de Rodolphe, elle l'avait descendu tout au fond d son coeur, et il restait là, plus solennel et plus immobile qu'un momie de roi dans un souterrain"[Quanto à lembrança de Rodolfo, ela o havia feito descer até o fundo de seu coração e lá ele estava, mais solene e mais imóvel do que uma múmia de rei em um subterrâneo'], é por acaso a pobre Emma que é capaz de assim descrever o cadáver de sua paixão?
Isabelle Hupert como Emma na versão cinematográfica de Claude Chabrol para o romance Madame Bovary

Os nomes dos personagens em Madame Bovary

          Em sua introdução à edição de Madame Bovary do "Le livre de Poche" da Hachette (2000), a professora e ensaísta Béatrice Didier levanta pontos interessantes sobre a importância da escolha/criação do nome da personagem principal, da heroína do romance. Ela afirma que a escolha do nome de um personagem é um ato capital. É com esse nome que o autor vai cristalizar todas as suas frases e palavras fazendo com que este ser, inicialmente de papel, ganhe vida e nos dê a ilusão de estar vivo, de ser real.
          Ela diz que Flaubert foi muito feliz ao encontrar e aproximar duas palavras: Emma e Bovary. O nome Emma está impregnado de sonhos romanescos e românticos, e o sobrenome Bovary possui a solidez normanda e bovina, como se a relação de proximidade entre nome e sobrenome bastasse para definir o drama da heroína. Se a escolha do título do romance por um lado nos mostra que o autor pretende concentrar todo o interesse sobre ela, é de se lamentar, talvez, que no título conste somente o seu nome social: Madame Bovary, e Emma tenha desaparecido. É que as convenções sociais foram mais fortes e Emma morreu com seus sonhos. Antes de ser Bovary, ela foi “Emma”, aquela que ama e que é amada, a heroína do desejo, sua vítima e sua mártir. A que fez do desejo um absoluto que a destruiu; a que não podemos ver sem desejar.

Nota: é importante ressaltar que o nome Emma em francês é pronunciado “emmá”, como o verbo amar ("aimer") no passado: amou, ela amou. Flaubert jogou com o som do nome ao dar nome à sua personagem.
Ruth Lifschits
***
Sobre nomes e ironia em Madame Bovary de Flaubert
Comentários extraídos da introdução de Lydia Davis à edição da Cia. das Letras (2011)

Se a descrição objetiva era o método literário de Flaubert, essa objetividade sempre estava imbuída de ironia. Ver e julgar uma coisa com um olho frio era julgá-la com a ironia que desde a infância fazia parte da sua natureza. Sua ironia domina o livro, colorindo cada pormenor, cada situação, cada fato, cada personagem, o destino de cada personagem e o conjunto da história. Está presente na escolha dos nomes: a velha carroça caindo aos pedaços chamada "Andorinha" (Hirondelle); os nomes de muitos personagens, como o próprio Bovary, uma das variantes francesas de "boi"; o agiota malvado Lhereux ("o feliz"). 
***
Anotação sobre o vizinho dos Bovary e seu contraponto com Emma
Extraída da introdução de Geoffrey Wall na edição da Cia. das Letras (2011)
Nada é suficiente para Emma: não há dinheiro suficiente, prazer suficiente. Homais, por outro lado, personifica uma abastança grosseira e robusta. Emma e Homais - em francês, os dois nomes sugerem femme (mulher) e homme (homem). Homais é o rude contrapeso cômico das sublimidades ansiadas, mas não tão trágicas assim de Emma. Homais e Emma, masculino e feminino, representam as energias contrárias que o próprio Flaubert encerrava desajeitadamente.
O ator Jean Yanne interpretou o papel de Homais na produção de Madame Bovary, filmada por Claude Chabrol em 1991.

28 de maio de 2012

Este mundo em que vivemos 2

Gainsborough, um detalhe
          Maria Tereza Albernaz
          Entrando no grande apartamento, logo percebi que não havia nada fora do lugar, nada fora de ordem. Salas sóbrias, cores neutras e perfeita arrumação dos móveis, quadros e objetos decorativos. Não era necessário ser conhecedora de reformas e decoração para saber que boa qualidade era uma exigência da dona da casa. 
          No apartamento, dez mulheres se encontravam para festejar o aniversário de M. 
      Os janelões abertos refrescavam o ambiente e mostravam a linda paisagem do mar e das montanhas que acolhiam o Alto Leblon. Brancas flores delicadas, combinando com a toalha, enfeitavam a mesa. Três empregadas uniformizadas, entre uma e outra convidada, ofereciam canapés e sucos naturais. No almoço, a comida frugal e sofisticada descansava sobre os aparadores. Um vinho leve foi oferecido. Bolo, velinhas, nem pensar. Depois do café, servido em frágeis xicrinhas de porcelana, algumas amigas, tranquilamente, foram fumar em uma das salas. 
        Todas nós, mulheres, tínhamos aproximadamente a mesma idade – um pouco mais, um pouco menos de 60 anos. Jóias discretas, roupas clássicas, básicas, pouco coloridas, algumas rejuvenescidas por uma peça ou um detalhe mais moderno. Extravagante, original, sexy? Nenhuma. Vulgar, muito feia ou muito gorda? Também ninguém. Todas bem cuidadas, tratadas. 
         A conversa girava sobre temas gerais. Quando o assunto referia-se à família, o foco estava nos filhos, seguidos por noras e netos. Sobre os genros, pouco se comentava. Muito se falava sobre viagens, países visitados, férias. Bons restaurantes contrapunham-se a dietas e atividades físicas praticadas pela maioria. Depois da troca de recomendação de filmes e livros, debatemos planos de fim de semana. Nada de temas polêmicos, discussão. Nada de exposição de problemas ou demonstração de excitação. 
      Eu era parte do conjunto. Monótonas, umas parecíamos com as outras. A falta de ardor exasperava. Tive de sair.
Gainsborough, outro detalhe (do blog da Duquesa Devonshire)

17 de maio de 2012

Meta (1913)

Robert Walser
                                                                                                                 (in Histórias de amor, trad. de Isabel Castro Silva)

Aconteceu certa noite, lembro-me apenas vagamente da cena, tão breve quanto comovente, regressava eu atordoado e trôpego de uma incursão selvagem aos botequins, quando numa das ruas monótonas da grande cidade encontrei uma mulher que me convidou a acompanhá-la até casa. Não era uma mulher bonita e, no entanto, sim, era bonita. Muito de acordo com o estado em que me encontrava, dirigi à criatura nocturna toda a espécie de chistes, pelo menos aos meus ouvidos bastante cómicos e tontos, mas ainda assim espirituosos, notando ao mesmo tempo, com aquele talento próprio de quem está embriagado, que ela me achava deveras divertido. Mais ainda: eu agradava-lhe, e fiquei com a impressão de que ela começava a sentir uma gentil afeição por mim. Fiz menção de me afastar, mas ela não me largava, e disse: "Oh, não fujas de mim. Vem comigo, querido amigo. Queres agora ser cruel e nada sentir por mim? Mas não. Bebeste demasiado, rapazinho. E, no entanto, quem para ti olha sabe que és amável. Queres agora ser maldoso e enjeitar-me vergonhosamente, a mim, que tão de repente me afeiçoei a ti? Mas não. Oh, se tu soubesses… mas não podemos incomodar os homens com os nossos sentimentos, senão apenas nos desprezam e escarnecem. Se tu soubesses quanto sofro com a frieza, com o vazio desta sensualidade que é o meu ofício, um ofício que desperta terror como uma tragédia. Até hoje sempre me vi a mim própria como um monstro que merece ser espezinhado. O meu ânimo é agora sereno, doce e casto, graças a ti, meu querido, e tu, tu queres agora atirar-me de volta para o monstruoso abismo? Mas não. Fica, fica, e vem comigo. Passaremos a noite inteira um com o outro. Ah, saberei entreter-te, logo verás. Quem sente alegria não é quem melhor entretém? E eu agora, depois de tanto, tanto tempo, sinto-me outra vez alegre. Sabes o que isso significa para mim, a inumana, sabes? Sorris? Sorris com muita graça, e eu amo o teu sorriso. E tu queres agora, distante e insensível a todos os encantos da amizade, roubar-me a alegria que sinto ao olhar para ti? Queres agora destruir e aniquilar tudo o que me faz feliz, tudo o que, depois de tanto, tanto tempo, me faz de novo feliz? Gentil amigo! Eu, que sempre fui forçada a conviver com a crueldade, com o peso de chumbo da atrocidade, não terei eu também o direito a por uma vez conhecer o prazer verdadeiro? Não sejas cruel. Peço-te, peço-te. Não, não te arrependerás. As horas que passares com a desprezada, com a desonrada, ser-te-ão bem-vindas e abençoadas. Sê gentil e vem comigo. Não sejas gentil comigo em nenhuma outra ocasião, mas agora, agora sê gentil e acompanha confiadamente a injuriada. Vê como as lágrimas me sobem aos olhos e ouve as minhas súplicas. Se partires sem que sejas meu amigo, tudo diante dos meus olhos será negro; mas basta que sejas amável para que o sol claro ilumine a noite. Sê esta noite uma estrela amiga e benfazeja no meu céu. Comoves-te? Dás-me a mão? Virás comigo? Amar-me-ás?"…

Epílogo: Não poderia esta mulher ser Circe, que pede ao nobre grego que cruzou os mares para que fique com ela? Ele quer regressar a casa, mas ela, ela suplica-lhe que não a abandone. É uma feiticeira má que transforma aqueles para quem olha em porcos grunhidores. É verdade que ela o nega; diz que não é uma feiticeira má, que ela própria é vítima do feiticeiro mau. É bem possível. É mulher, de resto, de uma beleza comovente. Tem uma voz branda e murmurada, e dos olhos, de um azul e verde marinho como muitas vezes se vê em gatos estrangeiros, irrompe um formidável clarão, amável e orgulhoso. não é infeliz mas também não é feliz. Procura e encontra no nobre grego a sua felicidade, e ele agora quer deixá-la para regressar à esposa que o espera. Oh, delicada tragédia. Entre outras coisas, diz ela que os seus companheiros de viagem se metamorfosearam por si próprios em porcos. Que a culpa e a vergonha é deles, não dela. São porcos porque queria ser porcos. Ela sorri, e pelo sorriso esgueira-se uma lágrima. É irónica e ao mesmo tempo de uma seriedade absoluta, frívola e ao mesmo tempo melancólica. "Não vês", diz ela, segurando a mão dele, "não vês que agora não sou eu a feiticeira, que o feiticeiro és tu? Oh, sê meu amigo, meu protector, meu querido e supremo feiticeiro. Protege-me de Circe. Se tu ficares comigo, eu não serei Circe. Ela vai-se embora se tu não te fores embora." Assim fala ela, cobrindo-o de ternas carícias, mas ele, ele… parte. Deixa-a entregue a Circe, entregue a si própria, deixa-a entregue à crueldade que tem no peito, entregue à ignomínia de que é escrava. Conseguirá ele partir? Será assim tão empedernido?

***
Na contracapa
Robert Walser revela um amplo amore mundi, que envolve as raparigas e os pássaros, as nuvens e as mulheres distantes, as flores e os campos e os enamorados que nele passeiam.
[...]
Em 1929 ingressou voluntariamente num manicómio. Foi encontrado morto, na neve, por um grupo de crianças no dia de Natal de 1956, quando dava um dos seus habituais passeios.

4 de maio de 2012

Saudades de Circe


Circe transforma os homens de Odisseu em porcos (1889) -
fotogravura de pintura por L. Chalon

No poema Endimião, do poeta John Keats, encontram-se versos de um rei transformado em elefante pela deusa, em tradução de autoria não identificada, captada no site wikipédia:
Não lamento a coroa que perdi,
A falange que outrora comandei
E a esposa, ou viúva, que deixei
Não lamento, saudoso, minha vida
Filhos e filhas, na mansão querida
Tudo isso esqueci, as alegrias
Terrenas dos velhos dias olvidei
Outro desejo vem, muito mais forte
Só aspiro, só peço a própria morte
Livrai-me deste corpo abominável
Libertai-me da vida miserável
Piedade, Circe! Morrer e tão-somente!
Sede, deusa gentil, sede clemente!

Uma versão canastrona de Circe, extraída da série televisiva The Odyssey, 1997, com direção de Andrei Konchalovsky. O ator Armand Assante interpreta Odisseu; Bernadette Peters é Circe.



24 de abril de 2012

Este mundo em que vivemos 1


Maria Tereza Albernaz
Ilsutração a partir de foto (Voluvia)
          O cheiro forte de peixe e flores velhas provoca náusea quando se entra na Rocinha pela ladeira de cima. As ruas estreitas sujas, pontilhadas de detritos intensificam o cheiro, e caminhar pelos calçamentos irregulares e degraus desalinhados exige atenção redobrada. Por algumas paredes e por pequenos buracos, faça sol ou chuva, escorre uma água escurecida. O emaranhado de fios elétricos sugere que a qualquer momento um forte curto circuito vai acontecer.  
          Entre portas fechadas ou entreabertas, na rua principal, lojinhas de todo o tipo oferecem comida, bebidas, roupas, material de construção e serviços, principalmente de consertos de televisão. Barulho e música alta. Dividindo a rua com passantes, em tabuleiros improvisados, multiplica-se o comércio de DVDs e CDs piratas, picolés, balas, biscoitos e muito mais.
          O trânsito de gente e cachorros é intenso. Mercadorias e sacolas são levadas de um lado para o outro e os carregadores pedem prioridade anunciando a carga pesada. Algumas crianças encontram espaço para brincar e jogar bola. De cócoras, alguns velhos quietos lembram figuras em paisagem rural. Inusitados no ambiente, os grupos de estrangeiros, jovens em sua maioria,  anotam, fotografam e reúnem-se em cantos para escutar o instrutor ou guia.
          Ritmo frenético, quente demais no calor, úmido e frio nos tempos chuvosos. Esta é a primeira impressão que tive da Rocinha e que persiste a cada dia que entro lá. O mesmo espanto, o mesmo mal estar, a mesma tristeza e tantas dúvidas.

16 de abril de 2012

Ira sagrada

                                                                                                                                                                                 Gilda Niemeyer
          Naquele tempo eu desconhecia a raiva, aquele sentimento de revolta, indignação, que nos faz reagir quando feridos, injuriados, ao que nos reduz a pó. Eu a ignorava, mas ansiava por conhecê-la. Me encolhia toda, elaborava as mais sofisticadas estratégias mentais, ensaiava risadas tímidas, envergonhadas, que não convenciam em nada. Tudo, num esforço colossal para atingir o adversário, marcar algum ponto a meu favor na luta inglória contra as forças contrárias, a dos enganadores, os experts da mentira e agressão.
        Ah! Se eu conseguisse apenas me expressar, dizer umas boas, ser ouvida, já me sentiria vitoriosa, repetia à exaustão.
          Os desafios seguiam-me, e eu impotente, dominada. Vencida, num certo dia, inicio uma nova fase em minha vida investindo em técnicas de meditação, preces de poder, mantras, contato com o fogo, respirações conectadas, tudo enfim, que me levasse a aprender a “arte da guerra”. Voando para dentro de mim numa busca incessante, percorro as mais variadas correntes de pensamento, freudianos, lacanianos, xamânicos, transcendentais.
          Meu sonho dourado era ter domínio no manejo da espada, enferrujada há anos. Já sabia que possuir um ideal é modificar a forma de vida completamente, como que pela morte. Me preparei para morrer. Me tornei outra.
           Novos desafios chegaram me convocando à luta. E eu seguia fraca, perdendo-me, lamentando a espada enferrujada por falta de uso. Determinada, com persistência e disciplina tornei-me Mestre. Como desistir de mim mesma?
         Foi então que algo inusitado aconteceu numa quinta-feira quando me sentei para o café da manhã. Edmea, minha funcionária, a quem eu chamava carinhosamente de Edmais, devido à sua competência, entrou na sala e eu perguntei:
           Posso contar contigo, conforme o combinado?
           Lamento, mas meu marido não deu permissão, responde ela.
           Contrariada, reagi. 
          ― Como? Então você não vai honrar o compromisso porque teu marido não quer? E nosso acordo, como fica?, digo.
          Edmais, em minutos transformada em Edmenos, não responde e me serve um pedaço de mamão, como de costume.
          Não quero esse mamão (ou terei eu dito “mamãe”?). Traz outro pedaço.
       Edmenos dá as costas e se dirige para a cozinha. Enquanto isso, a ira, a ignorada, surge e, suntuosa, se apodera de mim como uma febre purificadora, invadindo o prédio todo, atingindo os vizinhos e todos os que por ali passavam.
          O mamão chega. Recuso-o.
       Como posso comer um fruto tão mal cortado? Você não sabe como eu gosto do mamão? Não aprende nada mesmo. Corte outro pedaço, disse eu da forma a mais autoritária que encontrei.
     Foram inúmeras as tentativas feitas por Edmenos, mas a cada novo pedaço trazido minha indignação crescia.
         Eu arrastava uma esteira de ódio recolhido por décadas e aquela era a hora de fazer valer os meus direitos, a minha dignidade ferida, a minha sensibilidade feminina, e tudo mais que se referisse ao meu poder ultrajado por tantos.
       Quando, enfim, transbordei, esparramei toda a fúria, a condenada, pelo chão da sala. Devorei o mamão com prazer desconhecido. Restaurei a força de luta. Agradeci à mãe que surgia, à mão que me servia, e experimentei a paz.
Javier de la Garza. Aparición de la Papaya

2 de abril de 2012

Comissão da verdade

Renata Figueiredo
          Era uma loja de luxo, de grife, no Rio de Janeiro, num shopping de bacanas no bairro de São Conrado. O motivo de ter entrado na loja era um só, comprar uma roupa bem bonita para a festa de aniversário do meu filho que estava fazendo 4 anos. A proposta era comprar algo neutro, básico, porém colorido, sexy e original. Querendo ou não, eu era a mãe do aniversariante, e queria estar bem bonita para comemorar mais um ano de vida de meu filho tão amado.
          Assim que entrei na loja fui abordada pela vendedora que, muito simpática, tentou me ajudar a escolher uma roupa para a ocasião. Ela era jovem, magra, falante. Tinha um jeito bem parecido com o meu. Não demorou muito, e já estávamos nos tratando como se fossemos amigas de longa data. Escolhemos juntas exatamente aquilo que eu procurava. Uma calça rosa básica, discreta, que se destacava pela sua cor e corte alinhado, e uma blusa de tricô, da cor vinho, de manga três quartos, com uma ligeira abertura nas laterais dando um ar levemente ousado e jovem à roupa. Essa foi a primeira compra de muitas outras.
          A loja cresceu e abriu uma filial em Ipanema.  A vendedora que, para mim, já era uma amiga, foi ser gerente da nova loja. Eu, cliente assídua, não tinha uma vez que não fosse recebida de forma amável e carinhosa. Consumidora assumida, sabia que ali existia, além da troca comercial, uma amizade que a cada encontro ia crescendo.
          Vida dura, de ralação, horas e horas de venda e ela me mostrava tudo e mais um pouco. E eu por gostar e poder dispor de horas dentro de uma loja e ter dinheiro mais que o suficiente, acabava comprando tudo o que via na minha frente. Ganhava em roupas e em momentos agradáveis ao seu lado, e ela ganhava em comissão, e também em momentos agradáveis ao meu lado. Plena consciência do que era a nossa relação.
          Passados uns tempos, fui cansando desse consumismo, não precisava mais e, financeiramente, não podia mais. Por isso, deixamos de nos ver com tanta freqüência. Passava rapidamente pela loja e apenas conversávamos sobre amenidades. Até que um dia ela me falou que estava saindo da loja para abrir a sua própria marca.
          Chegada a hora da inauguração, lá estava eu, prestigiando e comprando. Bem menos do que antes. Queria mesmo era poder ter alguma coisa dela, como lembrança, como prestígio e ter uma peça como parte da nossa história, dessa nova história. Literalmente, incorporei o nome  da marca. É coisa delas. Nos entendíamos e isso bastava.
          Depois disso, na grande montanha-russa da vida, aconteceram tombos e vitórias. Mudanças daqui e dali, de endereços, de sócios... mas lá estava ela, sempre dando seu jeito, mexendo seus pauzinhos, na luta. Hoje, o forte da sua loja é a malha, o básico, o confortável, o bom gosto e a beleza. Ela é a modelo que veste e vende seus produtos. Com a mesma simpatia, sorriso, brilho, força e garra de uma boa libriana. Isso mesmo, libriana de carteirinha. Aí deve estar o segredo, o mistério que transformou uma relação entre cliente e vendedora numa de amiga para amiga. O empurra-empurra acabou virando comissão da verdade, e ainda pago da melhor forma possível, com direito a desconto e tudo. E assim continuamos, trocando de roupa a cada encontro, sem deixar de lado a beleza que é o nosso presente, e que nos faz enxergar as verdadeiras e boas aquisições.

30 de março de 2012

"O burrinho pedrês" vem aí

AFORISMOS
no conto de Guimarães Rosa, O burrinho pedrês,
publicado em Sagarana
Quem é visto é lembrado.

Quem vai na frente bebe água limpa.

Cavalo manso de moça só se encosta em tamborete.

Joá com flor formosa não garante terra boa.

Não é nas pintas da vaca que se mede o leite e a espuma!

Suspiro de vaca não arranca estaca!

Quem tem inimigo não dorme!

Burro não amansa nunca de-todo, só se acostuma!...

Quando corre, bate caixa, quando anda, amassa o chão!

Para bezerro mal desmamado, cauda de vaca é maminha.

Esta vida é engraçada... Galinha tem de muita cor, mas todo ovo é branco.

Quem viaja por terras estranhas vê o que quer e não quer!

É andando que cachorro acha osso.

Todo gosto é regra. 
Burrinho pedrez, José Roberto Aguilar, 1974Consulte: RecantodasletrasLeituras e releituras