16 de abril de 2012

Ira sagrada

                                                                                                                                                                                 Gilda Niemeyer
          Naquele tempo eu desconhecia a raiva, aquele sentimento de revolta, indignação, que nos faz reagir quando feridos, injuriados, ao que nos reduz a pó. Eu a ignorava, mas ansiava por conhecê-la. Me encolhia toda, elaborava as mais sofisticadas estratégias mentais, ensaiava risadas tímidas, envergonhadas, que não convenciam em nada. Tudo, num esforço colossal para atingir o adversário, marcar algum ponto a meu favor na luta inglória contra as forças contrárias, a dos enganadores, os experts da mentira e agressão.
        Ah! Se eu conseguisse apenas me expressar, dizer umas boas, ser ouvida, já me sentiria vitoriosa, repetia à exaustão.
          Os desafios seguiam-me, e eu impotente, dominada. Vencida, num certo dia, inicio uma nova fase em minha vida investindo em técnicas de meditação, preces de poder, mantras, contato com o fogo, respirações conectadas, tudo enfim, que me levasse a aprender a “arte da guerra”. Voando para dentro de mim numa busca incessante, percorro as mais variadas correntes de pensamento, freudianos, lacanianos, xamânicos, transcendentais.
          Meu sonho dourado era ter domínio no manejo da espada, enferrujada há anos. Já sabia que possuir um ideal é modificar a forma de vida completamente, como que pela morte. Me preparei para morrer. Me tornei outra.
           Novos desafios chegaram me convocando à luta. E eu seguia fraca, perdendo-me, lamentando a espada enferrujada por falta de uso. Determinada, com persistência e disciplina tornei-me Mestre. Como desistir de mim mesma?
         Foi então que algo inusitado aconteceu numa quinta-feira quando me sentei para o café da manhã. Edmea, minha funcionária, a quem eu chamava carinhosamente de Edmais, devido à sua competência, entrou na sala e eu perguntei:
           Posso contar contigo, conforme o combinado?
           Lamento, mas meu marido não deu permissão, responde ela.
           Contrariada, reagi. 
          ― Como? Então você não vai honrar o compromisso porque teu marido não quer? E nosso acordo, como fica?, digo.
          Edmais, em minutos transformada em Edmenos, não responde e me serve um pedaço de mamão, como de costume.
          Não quero esse mamão (ou terei eu dito “mamãe”?). Traz outro pedaço.
       Edmenos dá as costas e se dirige para a cozinha. Enquanto isso, a ira, a ignorada, surge e, suntuosa, se apodera de mim como uma febre purificadora, invadindo o prédio todo, atingindo os vizinhos e todos os que por ali passavam.
          O mamão chega. Recuso-o.
       Como posso comer um fruto tão mal cortado? Você não sabe como eu gosto do mamão? Não aprende nada mesmo. Corte outro pedaço, disse eu da forma a mais autoritária que encontrei.
     Foram inúmeras as tentativas feitas por Edmenos, mas a cada novo pedaço trazido minha indignação crescia.
         Eu arrastava uma esteira de ódio recolhido por décadas e aquela era a hora de fazer valer os meus direitos, a minha dignidade ferida, a minha sensibilidade feminina, e tudo mais que se referisse ao meu poder ultrajado por tantos.
       Quando, enfim, transbordei, esparramei toda a fúria, a condenada, pelo chão da sala. Devorei o mamão com prazer desconhecido. Restaurei a força de luta. Agradeci à mãe que surgia, à mão que me servia, e experimentei a paz.
Javier de la Garza. Aparición de la Papaya

Nenhum comentário:

Postar um comentário