10 de novembro de 2015

Escrita da cena / Escrita e cinema


          Nos anos 70, ainda na Argélia, cineastas e médicos fizeram um documentário educacional sobre uma doença dos olhos que se espalhava por uma das províncias centrais do país. Equipes passaram a viajar para mostrar o filme e organizar palestras nas aldeias. A doença, uma forma de tracoma, é causada por uma mosca, que foi mostrada várias vezes em close na tela.
            Depois da exibição, os aldeões afirmaram que o filme nada tinha a ver com eles. Pareciam até surpresos de terem sido convidados a vê-los.
-       Mas quase todos vocês têm tracoma!
-       Sim, mas não temos moscas desse tamanho.

         [...] Na década de 60, o diretor e etnólogo Jean Rouch fez um filme sobre a caça ao hipopótamo, com os habitantes de uma aldeia perto do rio Niger. Durante as filmagens, gravou música na aldeia dos caçadores. Foi então a Dacar para montar o filme, incorporando a música à trilha sonora.
           Alguns meses depois, com o filme pronto ele voltou à aldeia para mostra-lo aos habitantes. [...] O filme como filme teve plena aceitação. Mesmo assim, já quase de madrugada, um ou dois deles acrescentaram um comentário aos calorosos elogios que faziam a Jean Rouch: a música estava errada, bastante errada.
-       Mas é a música de vocês! Eu a gravei bem aqui! – disse Rouch, surpreso.
-       Oh, sim – responderam os africanos. – Nós a reconhecemos. Mas se a tocássemos assim, durante a caçada, os hipopótamos fugiriam bem depressa.
(De A linguagem secreta do cinema, Jean-Claude Carrière, trad. Fernando e Benjamin Albagli, 1995)

ESCREVER CINEMATOGRAFICAMENTE É FAZER A MENTIRA PARECER REAL?
É REFORÇAR A REALIDADE PARA ENFATIZAR O DRAMA?
TRILHA SONORA, DECUPAGEM SÃO RECURSOS CINEMATOGRÁFICOS QUE PODEM SER TAMBÉM USADOS EM TEXTOS LITERÁRIOS, AINDA QUE NESTE ÚLTIMO CASO, SEJA PRECISO TODO UM ESFORÇO EXTRA PARA FAZER O LEITOR VER A CENA.
Observem-se os saltos na narrativa, as decupagens que parecem espontâneas, a entrada da música no corte entre o mar e o rio neste trecho do filme de Jean Rouch: "moi, un noir" (eu, um negro), 1958. Seria possível descrever esta cena literariamente com a mesma leveza do filme? A literatura conta com as metáforas e metonímias e outras figuras de linguagem como formas de "decupagem" da língua.


***
            Como se cria uma cena?
            Primeiro crie o contexto e depois determine o conteúdo.
            O que acontece numa cena? Qual é o propósito da cena? Por que  ela está lá? Como ela move a história adiante? O que acontece?
           Um ator às vezes aborda a cena descobrindo o que ele está fazendo nela, onde ele esteve e onde estará depois da cena. Qual é o propósito da cena? Por que ele está lá?
            Como escritor, é de sua responsabilidade saber o que acontece com seus personagens dentro das cenas, e também o que acontece a eles entre as cenas; o que aconteceu entre segunda-feira à tarde no escritório e quarta-feira à noite no jantar? Se você não sabe, quem sabe?
            Ao criar contexto, você determina um propósito dramático e pode construir sua cena frase a frase, ação por ação. Ao criar contexto, você estabelece conteúdo.
            Certo. Como se faz isso?
           Primeiro, ache os componentes ou elementos dentro da cena. Que aspecto da vida profissional, pessoal ou privada de seu personagem será revelado?
            Voltemos à história de três caras assaltando o Chase Manhattan Bank. Suponha que queiramos escrever uma cena em que nossos personagens decidem-se definitivamente a assaltar o banco. Até agora, eles somente falaram sobre isso. Agora eles vão fazê-lo. Isso é contexto. Agora, conteúdo.
            Onde sua cena acontece?
            No banco? Em casa? Num bar? Dentro de um carro? Caminhando no parque? O lugar óbvio para colocá-la seria um lugar calmo, distante, talvez um carro alugado numa rodovia. Este é o local óbvio para a cena. Funciona, mas talvez haja algo mais visual que possamos usar; afinal, isto é um filme.
            Atores frequentemente representam "contra a corrente" da cena; isto é, abordam a cena não do ponto de vista mais óbvio, mas do menos óbvio. Por exemplo, eles representarão uma cena de ódio sorrindo suavemente, escondendo sua raiva atrás de uma máscara gentil. Brando é um mestre nisso.
            Em Silver Streak (Expresso de Chicago), Colin Higgins escreve uma cena de amor entre Jill Clayburgh e Gene Wilder em que eles conversam sobre flores! É lindo. Orson Welles, em The Lady of Shanghai (A Dama de Xangai), teve uma cena de amor com Rita Hayworth num parque aquático, em frente aos tubarões e barracudas.
               Cena de "A dama de Shangai" em que se mencionam tubarões no Brasil que, enlouquecidos,
se comem uns aos outros.
            Quando escrever uma cena, procure por uma maneira de dramatizar a cena "contra a corrente".
            Suponha que usemos uma sala de sinuca lotada, à noite, para colocar a cena de "decisão" de nossa história do Chase Manhattan Bank. Podemos introduzir um elemento de suspense na cena; enquanto nossos personagens jogam sinuca e discutem a decisão de assaltar o banco, um policial entra, perambula pelo lugar. Isso acrescenta um toque de tensão dramática. Hitchcock faz isso o tempo todo. Visualmente, poderíamos começar com uma jogada na bola sete, e depois abrirmos o quadro para revelar nossos personagens debruçados na mesa falando sobre o roubo.
            Uma vez determinado o contexto — o propósito, local e tempo — o conteúdo vem naturalmente.
            Suponha que queiramos escrever uma cena sobre o fim de um relacionamento. Como a faríamos?
            Primeiro — estabeleça o propósito da cena. Neste caso é o fim de um relacionamento. Segundo — descubra onde a cena se localiza e quando, dia ou noite. Ela pode se localizar num carro, numa caminhada, num cinema ou num restaurante. Usemos o restaurante; é o lugar ideal para terminar um relacionamento.
            Eis o contexto. Eles estão juntos há muito tempo? Quanto tempo? Num relacionamento prestes a terminar, geralmente uma pessoa quer que ele acabe e a outra espera que não. Digamos que ele quer terminar com ela. Ele não quer magoá-la; ele quer ser o mais "gentil" e "civilizado" possível.
            É claro que o tiro sempre sai pela culatra. Recorde a cena de rompimento em An Unmarried Woman (Uma Mulher Descasada), em que Michael Murphy almoça com Jill Clayburgh, mas não pode forçar-se a dizer as palavras. Ele espera até chegarem à rua, depois do almoço, então descontrola-se e deixa escapar as palavras.
            Primeiro, encontre os componentes da cena. O que existe num restaurante que possamos usar dramaticamente? Os garçons, a comida, alguém sentado ao lado; um velho amigo?
            O conteúdo da cena agora torna-se parte do contexto.
            Ele não quer "magoá-la", então está calado e desconfortável. Use o desconforto: frases interrompidas, olhar fixo na distância, o espiar de outros jantares próximos; talvez o garçom entreouça algumas observações, e ele é um francês rude, possivelmente homossexual. Você tem que escolher!
            Este é um método que lhe permite ficar no controle de sua história, não sob o controle dela. Como roteirista, você tem que exercer a escolha e a responsabilidade na construção e apresentação de suas cenas.
            Procure pelos conflitos; dificulte alguma coisa, faça-as mais difíceis. Isso acrescenta tensão.
(De Manual do roteiro, Syd Field, trad. Álvaro Ramos, 1995)
  ***
Do processo de escrita de Ana Paula Maia
Trechos da entrevista “Ir aonde ninguém quer ir” (Por Christian Grünnagel)

O Germinal é um livro que li para escrever a passagem do carvão [em “Carvão animal”], por causa da mina. Além disso, assisti à adaptação para o cinema, porque é visualmente também importante. Foi uma referência. Você lê um livro para escrever um capítulo, uma cena.

Talvez isso seja também uma relação que esse livro [“A guerra dos bastardos”] tem com o cinema. Por exemplo, tem uma passagem desse livro em que ele é visto de dois ângulos diferentes. Na mesma passagem, há a cena de atropelamento do Amadeu, você vê ela no primeiro momento e, lá na frente, você vê como ela foi provocada por um outro ângulo. Então existe essa brincadeira do olhar, da narrativa.

Para escrever uma cena, às vezes, eu demoro muito, porque eu tenho que entender qual é o processo daquilo ali. Qual é o nome daquela manivela? Aí eu paro e vou descobrir o nome da manivela. Eu faço questão. Este livro [Carvão animal] foi revisado por um bombeiro de verdade. A parte de fogo mesmo, eu destaquei e mandei para ele, que revisou.
***
            Aparou o bigodinho e escolheu a camisa florida.

                 Ele se enfeitava para a morte e não sabia.
(De Ah, é? Dalton Trevisan, 1994)
Exercício:
1. O que acontecerá com o cara do bigodinho? Imagine as circunstâncias da sua morte.
2. Escreva um contexto para a cena apresentada por Dalton Trevisan, de modo que,  pela leitura de alguns detalhes, o leitor acesse a um conteúdo coerente com o que virá a ser o episódio onde o sujeito irá morrer. (Não é preciso escrever a cena da morte propriamente dita.)

13 de outubro de 2015

A madrugada de Gretta


O movimento brusco de Gabriel, lançando o braço pesado sobre o peito de Gretta, fez com que a moça acordasse no meio da noite. Abriu os olhos, empurrou devagar o corpo do marido para mais longe e suspirou aliviada. Como escutava o vento estridente e as cortinas voavam alto, saiu de mansinho da cama quente para verificar as trancas das janelas. Conseguiu vedar as frestas maiores com toalhas e por algum tempo, ficou recostada no vidro, distraída vendo a chuva ensopar o jardim do hotel. Aos poucos, os acontecimentos ocorridos na véspera fluíam desordenados em sua cabeça.
              A lembrança da festa na noite anterior deixou Gretta melancólica, mas sua conversa com Gabriel, antes de dormir, poderia ter um bom final para ela. Quantas vezes participou da comemoração do dia de Reis na casa das tias? pensou. Desde a primeira, detestou o tradicional evento e apesar disto, como esposa do sobrinho favorito, sempre procurou agradar e demonstrar prazer por estar ali. Para suportar a família do marido e os amigos convidados, para suportar a mediocridade e a mesmice, a moça descobriu que precisava estar um pouco entorpecida. Assim, com a ajuda da bebida, desde que chegou na festa, conversou e dançou sem mostrar tédio, jantou, elogiou os repetidos pratos de comida, e bravamente, com um sorriso nos lábios, escutou até o fim o patético discurso de Gabriel.
              Gretta suspirou alto lembrando da única surpresa da noite. Quando os últimos convidados se despediam, inesperadamente uma música passou a ser cantada. Ela tremeu. Era uma música da região onde havia nascido e pouco conhecida ali. Marcou sua juventude e fez com que ela voltasse ao passado, às boas recordações com a sua avó e com amigos. Lembrou de Michael, amor adolescente, olhos expressivos que cantava tão bem a mesma música. Tentando conter as lágrimas que corriam em seu rosto, recordou da morte prematura do rapaz. Tarde como era, já tendo bebido demais, não controlou a emoção que transbordava. Naquela hora, não se deu conta que Gabriel de longe a observava. 
              Gretta reviu mais uma vez a conversa que teve com o marido quando chegaram ao hotel e decidiu esperar sentada que ele acordasse. Ele tinha ficado impressionado com a resposta da mulher sobre o motivo de seu estado transtornado quando escutou a música no final da festa. Mas mal deixou Gretta terminar de contar suas histórias do passado. Fixou-se em Michael e em sua morte. Perturbado, disse que ela tinha guardado um segredo grave. Uma paixão interrompida pela morte, mas viva em seu coração! Gretta ficou admirada com o drama engendrado por Gabriel e, naquele momento, viu uma saída para ela. Resolveu não esclarecer nada, não falar de sua saudade de Galway, da nostalgia que sentiu e nem mencionou que havia bebido demais. Certamente lembrou-se de Michael, mas somente como mais um personagem querido de anos atrás. De coadjuvante, porém, o jovem virou protagonista da história de amor criada por Gabriel.
              Providencial o que aconteceu, pensou Gretta. Há tempos, tentava falar que não era feliz no casamento, que preferia viver sozinha. Quando iniciava a conversa, Gabriel desviava para outro assunto porque não concebia a ideia de que uma mulher escolhesse deixar a segurança oferecida por um marido para ficar por sua conta. Gretta queria aproveitar os sentimentos que afloraram no marido enquanto conversaram na noite anterior para falar da separação. Ele estava abalado com a paixão que criou para Gretta e desolado por não ter ele mesmo experimentado um amor com tamanha intensidade. Que ele pensasse o que quisesse! Gostava de Gabriel e desejava que ele conseguisse se libertar de tantas regras e amarras sociais, mas o que  ela queria mesmo era se afastar daquele homem tão cheio de certezas e verdades.
              Amanhecia e a chuva não parava de cair. Com meio sorriso, Gretta pensou que o dia cinza seria o cenário ideal para a conversa.
Maria Tereza

6 de outubro de 2015

Notas sobre "Dublinenses", sobre Joyce, sobre "Os mortos"

Fusão realismo e simbolismo
    A técnica realista opera por amostragem, isto é, das ações dos personagens, vislumbra-se um certo tipo de ser em sociedade. De situações particulares, lançam-se luzes sobre a divisão social, o sistema político, o regime religioso etc.
     Mas a realidade não é oral. É visual, olfativa, tátil. Nem mesmo todos os sons são passíveis de tradução. Memórias, imagens, paixões não são palavras. Não se transcreve diretamente a realidade.
    No simbolismo, parte desse princípio: um escritor não transcreve; sugere. Usa metáforas, não para declarar, mas para sugerir. Palavras são símbolos compartilhados. Só assim aproxima-se drama e epifania.
    Joyce busca a contemporaneidade dos mitos, indicados por dramas vividos talvez como leis imutáveis, mas sob forma e aparência variáveis. Por isso então um drama não se presta à pregação de moral ou à compreensão da beleza, sempre arbitrárias, mas à verdade, no domínio do mais comprovável e real. Nas palavras do autor: “O drama surge espontaneamente da vida e é coevo dela. Cada raça criou seus próprios mitos e é nesses que o drama, por vezes encontra a sua expressão."
     Significa dizer que o interesse provocado por um drama, um grande conflito, não depende dessa ou daquela ação, nem mesmo de incidentes ou de agentes conflitantes. Drama e vida existem em um mesmo tempo. O drama em toda a sua nudez mostra-se como caminho para a percepção de uma grande verdade, o aparecimento de uma grande questão. Por isso, a glorificação da vida comum: o homem mais comum, o mais morto dentre os vivos, desempenha um papel em um grande drama.
Fonte: https://armonte.wordpress.com/tag/james-joyce/
Ibsen
    Discípulo de Ibsen, Joyce tampouco aspira ideais elevados e denuncia hipocrisias da igreja, o dogmatismo dos partidos políticos, o caráter repressivo do casamento, o status inferior da mulher na sociedade. Tradutor de Ibsen em "Quando despertamos de entre os mortos", Joyce destacou o teatro como exemplo de economia. Curioso é o fato de ter sido pela descoberta da invasão de povos nórdicos na Irlanda que Joyce se enxergou mais em seu país, de forte tradição celta.
    Ainda sobre Ibsen, Virgínia Woolf [contemporânea de Joyce] escreveu:
Um quarto é para ele um quarto;
uma escrivaninha, uma escrivaninha;
e um cesto de lixo, um cesto de lixo.
Ao mesmo tempo,
a parafernália da realidade
tem por vezes de se tornar o véu
através do qual vemos o infinito.
Fonte: http://www.joaodorio.com/site/index.php?option=content&task=view&id=280
     Nietzsche
    A religião da arte e não a moralidade é a última atividade metafísica no niilismo europeu. O artista como super-homem é um ser alteroso, seu isolamento é glacial em sua abominação das massas; abdica a expressão individual em favor da universal. Pela arte procura superar a subjetividade num encontro com o dionisíaco, quando o  eu-lírico soa do abismo do ser.
    Tal como sugere Nietzsche em "O nascimento da tragédia": é preciso ver a ciência com a ótica do artista mas a arte com a da vida. Isto é "filosofar com o martelo".

Foto: BiaA.
Em "Os mortos", o leitmotiv é a música.
    Na aproximação com a morte, mortos equiparam-se a vivos, quando acontece a aparição de um morto mais vivo do que os vivos. Pela música desperta a epifania, o ressurgimento da nostalgia, da felicidade e da paixão. O drama é a paralisia, a impossibilidade de se mover. Gabriel é uma sombra de si mesmo. Em uma festa, ele se encontra com três mulheres marcantes: Lily, Miss Ivors e Gretta.
    Em seu discurso anual, ele quer se vingar do tempo, e destaca a separação nítida entre as gerações, entre os vivos e os mortos. A imagem da neve que não para de cair sobre todos, sobre todo país mostra uma paisagem paralisada, de vidas congeladas, quando mesmo uma festa torna-se rotina.
    A prisão da rotina. O desejo de escapar, a interseção morte e vida: são temas em “os mortos”; a paralisia, a epifania, a traição, a religião: os motivos; janelas, noite e comida: símbolos. Tédio, paralisia. Mas a neve não pode continuar a cobrir tudo para sempre.  O final fica em aberto: entrevê-se um abraçar a vida, morosamente aceitá-la.
    As cores que predominam são a amarela e a marrom. A ação é interior, em interiores, em fluxo da consciência. O narrador vê a cena com o foco de Gabriel. Descreve a mesa em linguagem militar, com imagens de um campo de batalha, como uma natureza morta.
    Diz-se que a história serve como um balanço para o primeiro conto: “As irmãs”.
The lass of Aughrim
Gabriel, “o inglês”
    Disse ele, em um diálogo enraivecido com Miss Ivors: “o irlandês não é meu idioma.” E o poeta que Gabriel gostaria de citar em seu discurso é Browning, um inglês, talvez refinado demais para aquele público, um pouco grosseiro. Gabriel usa galochas. Estudou na Anglican Trinity College. Em seu trajeto, destaca a estátua de Wellington, herói britânico que deixou a Irlanda, apesar de ter nascido ali. Por fim, lembra da estátua de William III, do seu avô em torno dela. O monge trapista, católico, aparece como um zumbi. A descrição de Freddy Malin pontua todo conto. Ele é o contraponto de Gabriel. Um bêbado desequilibrado, profundamente irlandês. O anjo Gabriel e o demônio Freddy se alternam.
    Na penúltima cena, do corrimão da escada, sob a música ao fundo, uma canção da Irlanda profunda se passa cinematograficamente. A visão de um guarda-chuva, de um crispar de mão, de objetos sucedem-se em saltos, como cortes de um filme que passa de um ângulo a outro, de uma perspectiva a outra, sem conexão aparente, a não ser pelo fato de estarem todos aquelas possibilidades ali, ao mesmo tempo.
    Fica a sugestão: procurar ler o conto de Joyce Carol Oates, “The dead”, de  1973.
O conto "The dead" de Joyce Carol Oates foi publicado em Marriages and infidelities.
Modernista
    Moderno é saber que o mundo não tem sentido e a existência não tem propósito. Moderno é deixar-se infectar pela linguagem do outro. Lembrem-se que desde a primeira frase do conto, para descrever a criada Lily o autor escolhe o advérbio “literalmente”. Significa dizer falar como ela, pensar como ela, do mesmo modo que posteriormente o autor infecta-se de Gabriel, personagem de classe média. Quando se escreve sobre um personagem, é ele quem dita as palavras, as expressões a serem usadas.
    Moderno é usar o método poundiano do detalhe luminoso, do punti luminosi. Pela arte da ficção, apresentar emoções, não provocá-las.

22 de julho de 2015

Poesia em prosa X prosa em poesia


Mix Baudelaire
Onde encontrar o livro de “Pequenos poemas em prosa” em português
tradução de Aurélio Buarque
http://pequenospoemasemprosa.blogspot.com.br/2011/01/o-estrangeiro.html

Questionamentos durante a maturidade literária de Baudelaire sobre a necessidade de uma renovação formal mais de acordo com a imaginação e a sensibilidade urbana da modernidade, levaram-no a intensificar a sua atenção para flagrantes e temas inspirados no cotidiano da cidade. Os “Pequenos poemas em prosa” foram escritos ao mesmo tempo que os poemas de Tableaux parisiens, seção incluída na segunda edição de Les fleurs du mal.

Enquanto aparecia de modo fragmentário em diversas revistas e jornais, vários foram os títulos para essa obra:
-       1857, seis textos, na revista Le Présent: “Poèmes nocturnes”;
-       1861, nove textos, na Revue Fantaisiste: “Poèmes en prose”;
-       1861/1862, vinte textos, proposta ao editor da revista La Presse, seu amigo Arsène Houssaye: “Lueur de la fume / poème, en prose” (com a virgula, ainda demarcando um hiato, um limiar entre os gêneros.
-       1863 na Revue Nationale et Étrangère e também em L’Artiste, no ano seguinte: mesmo título
-       1864, seis textos, no jornal Le Figaro e na La Revue de Paris: “Spleen de Paris”
-       1866, dois poemas, na Revue du XIXème Siècle: “Petits poèmes lycanthropes”
-       1869, nas obras completas (póstumas) editadas por Calmann-Lévy, o quarto volume: “Petits poèmes en prose”
-       na edição seguinte, pela editora Garnier, o mesmo conjunto passou a chamar-se “Spleen de Paris”
***
Prosa poética 
Do dicionário de termos literários[1] - Autor do verbete: Alberto Pimenta
Discurso em prosa (“discurso que avança”)
X
discurso em verso, e não a poesia (“discurso que avança e retrocede”)

          Prosa e verso são dois princípios de segmentação do discurso (há outros, como a lista, em que a linearidade é substituída pela sequencialidade vertical, ou como a constelação da Poesia Concreta).
          A primeira forma de expressão literária é o discurso metrificado. Aristóteles se referia a livros científicos em discurso metrificado, não os considerando poesia.
          A prosa aparece em escritos filosóficos e, depois, no romance helenístico, passando o princípio da referencialidade narrativa a se sobrepor ao princípio rítmico na elaboração do discurso literário.
          Na Idade-Média, verso e prosa alternam-se com facilidade e frequência, havendo inclusive um exercício de escola que consistia em transformar o discurso metrificado em prosa livre e a versificação do discurso em prosa também não era rara.
Cisão entre os discursos em verso e prosa
X
Regência dos princípios gerais da Retórica
(“prosa de estilo” = clausula ritmada = conclusão do período dentro de regras de vocalismo e de acentuação)

          Em vernáculo medieval, a clausula foi reduzida a três tipos de acentuação rítmica finalizante ao cursus (planus, tardus, velox). Mas intuitivamente todo o bom prosador narrativo encontra um ritmo adequado para os seus fechos de período.
          Na Renascença, a prosa narrativa se livra de imposições rítmicas rígidas; humaniza-se; avessa a requintes, requebros e enigmas discursivos.
          A Prosa poética mantém o compromisso com os dois elementos formantes do discurso: o semântico e o formal, mas o princípio rítmico prevalece em detrimento do semântico narrativo; a função referencial da narração perde importância.
          Um crescente número de livros que se proclamam como romances recusa-se a contar uma história, a ser lido como uma história, como discurso que avança, tendente a um desfecho, a um fim.
O leitor de Molloy, de Beckett, por exemplo, espera não tanto pelo que vai acontecer mas pelo que será dito, algo que pode passar como um evento na página.[2] Em Joyce ou nos poetas do Oulipo[3], mesmo que se priorize a importância da mensagem que se queira passar (quer dizer aquilo que têm em comum o texto e a tradução), o escritor não pode ser insensível às estruturas que emprega e não é por acaso que ele adota uma forma e não outra.
          O começo da descrição da serra, na chegada dos amigos de Paris, n’A cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, é dado no enunciado seguinte: “A grandeza igualava a graça”, o que pode ritmicamente reduzir-se à equação (gr=gr), configura-se como uma realização pontual de poesia numa obra de prosa narrativa, acentuando-se a sua motivação rítmica.
          Essa motivação do ritmo, revelada pela subjetividade, realiza-se como um enigma decorrente duma “necessidade interna”, não semanticamente mediada. Desvinculadas da sua racionalidade utilitária, as coisas do mundo – até as mais insignificantes ou primitivas – têm a possibilidade de se mostrarem belas.[4] 
          Quando ainda é rígida a diferença entre prosa e poesia, a prosa lança mão das palavras apenas para “significar” e nada mais. É o que Coleridge chama de Table Talk.
          Na Prosa poética, não há temas em si poéticos ou não; busca-se uma perda das arestas objetivas e utilitárias, da “ética da narrativa”, que caminha em direção a um fim exemplar; há uma fruição das unidades semióticas e, especificamente, de pronúncia, com marcação de pausas e atenção especial à articulação, à entoação e à criação de melodia, considerando-se que a Linguagem quer dizer (função semântica), mas também é (organização com concretude própria) e que no discurso narrativo pragmático, a segunda dimensão fica apenas latente. 
          O limite da exacerbação do processo que inverte a função semântica do discurso e apresenta-se como puro processo da linguagem como uma substância gerada pela enunciação de estruturas verbais, num apelo sobretudo a sua função sugestiva, é o “self-generating text”.
          O conceito remete para o Romantismo, com a sua desagregação dos gêneros, e assunção do fragmentário e da mistura.
          A bem da correção do discurso com intenção poetizante, Alexandre Herculano substituiu, na versão definitiva do seu livro Eurico:
do bramido do mar e do rugido das ventanias 
por
do bramido do mar e do rugido dos ventos
          Na substituição de ventanias por ventos, evidentemente, a ênfase rítmica atuou como motivo da modificação.
Dito isso, qual a diferença entre Prosa poética e Verso livre?
A visilegibilidade do texto, isto é,
o efeito visual do texto no papel; a “intenção de efeito” em oposição à “intenção de comunicação.
***
Note-se a diferença entre o prosaico:
O agente olhou à sua volta e sentiu uma imensa tristeza.
E o poético:
O agente olhou à volta/recordou a filha morta.

          Na Prosa poética, o orador assume uma atitude lírica, mesmo sem rima, nem métrica; não tem a narração dos fatos como objetivo único; transmite sensações. Tal como acontece nos microrrelatos, cuja intenção estética predomina sobre o desejo de narrar (cf. Antonin Artaud e Julio Cortázar). Na linguagem coloquial, “prosa” refere-se a um excesso de palavras usadas para dizer coisas de pouco relevo; assemelha-se a “lábia”. Por ex.: “O Dr. Fausto é um político de prosas acesas, mas de poucas ideias”, “Chega de prosas: por favor, limita-te a dizer os principais pontos do teu projeto”.
***
Fernando Paixão (Poemas em prosa: poética da pequena reflexão)
Simbiose entre gêneros tradicionais:
nem poesia, nem prosa, mas uma terceira via; tensão comum aos modelos;
um texto que se propõe a ser poema, mas também prosa, como alternativa à repetição.

          Por pequena reflexão entenda-se não o conteúdo filosófico, de articulação racional, e sim a perspectiva de guardar distanciamento diante dos fatos e sensações percebidas. Mas, a atitude meditativa que prevalece em boa parte dos textos dessa natureza não provoca necessariamente uma depreciação do efeito poético. Ao contrário, pois essa mesma visão crítica recusa os mecanismos sociais que banalizam a linguagem e continua desejosa de uma expressão outra, em que seja possível uma linguagem pessoal e comprometida com a experiência vivida.

          Acionado pela força do detalhe ou do objeto, por um ângulo ou por um gesto fortuito, o procedimento reflexivo costuma recorrer aos valores elementares – sensações, sentimentos, percepções –, com o propósito de expressar determinada condição. Uma concha, o café e o leite da manhã ou o pássaro sobre a pedra, qualquer coisa ou ser, tem o poder de estimular os sentidos e produzir entrelace de imagens.

          Por conseguinte, o ato de refletir implica alguma complexidade; engendra-se a partir de operações entrecruzadas, envolvendo ao mesmo tempo as capacidades de perceber, duvidar, julgar, raciocinar – mistura que se resolve na singularidade do poema. Essa perspectiva permite ao sujeito lírico ocupar a centralidade do texto e despertar as associações que lhe interessam ou cativam. E, como se trata de uma escolha “pessoal”, dispensa o vínculo lógico das relações e testemunha em palavras o pensamento (e as emoções) em ação.

          Faz parte dessa atitude não enfatizar os ornamentos de estilo ou mesmo a melopeia das frases. A ênfase do aspecto formal acabaria por perder em naturalidade. Para o espírito reflexivo, por sua vez, interessam mais as ambiguidades e torções de sentido; são mais adequadas as palavras da ironia, do jogo de contrastes ou da liberdade associativa. Desvios que a linguagem poética produz para se afastar do imaginário comum.
De Thomas Christensen, a partir das fotos de Nadar e Etienne Carjat
           Dedicada ao assunto, a crítica Suzanne Bernard – que em 1959 publicou um amplo estudo sobre o gênero –, ao concluir suas mais de setecentas páginas, salienta [...]: “é justamente em razão de sua plasticidade e da infinita variedade de meios que o poema em prosa aparece como o gênero em que melhor se pode exprimir a liberdade humana” (BERNARD, S. Le poème en prose: de Baudelaire jusqu’à nos jours. Paris: A.-G. Nizet, 1994, p.772).
          Em contrapartida, Bernard adverte que tamanho grau de experimentalismo pode levar a uma desorganização total da frase e do plano semântico, sob o risco de cair no informe e no balbucio mental, com o agravante de perder a comunicação com o leitor. O mesmo gesto libertário, que amplia o repertório da imaginação, oferece o perigo de adentrar por uma vertigem ensimesmada e oca. Em seu livro, Bernard deixa a questão em aberto.
***
Prosa poética em três tempos
O estrangeiro[5]
Ele vivia de desejo e tinta. Ele detestava as frases feitas, de jargão, tanto quanto as reuniões – em particular as de família que lhe encheram os olhos da infância –, os livros de ouro e os diários. Ignorava-se a sua origem; o que permitia aos curiosos criar inúmeras especulações a respeito: se ele era um estrangeiro – mesmo sem nunca ter se traído pelo sotaque – ou um cidadão deste país – e nesse caso ao menos seria conhecido algum parentesco. Diziam alguns que ele se desinteressava da condição das palavras, que era um incurável egoísta; outros, ao contrário, sustentavam que, se ele mantinha distância dos outros homens, era por estar infeliz. Algumas relações com mulheres lhe eram atribuídas, mas sempre com misteriosas viajantes que desembarcavam por um dia e nunca mais apareciam. Os filósofos confessavam sua importância para incorporá-lo em seus tratados. Ele surgia com sua pena de surpresa, atraído, pode-se dizer, pelo rosto ou pela voz de um vocábulo em que ninguém havia percebido o poder de sedução, para se tornar um dos enigmas da poesia.
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Uma concha de ostra[6]
A concha está riscada, como se fosse uma pedra polida no leito de um rio agitado, levada pelos grandes troncos de árvore que seguem abaixo. Algumas vezes o cálcio cinzento se enruga quase por completo, como quando a lava se esfria, e temos então alguma coisa ainda raivosa.
Quando a viramos, percebemos que a concha no seu interior é mais cheia de segredos, mais acabada, mais humana. Nossos dedos sentem a lisura interna e lembram blueberries.
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Café da manhã[7]
Lá se vão os anos e ele já não toma as manchetes do matutino pela realidade.
Não cancela a assinatura por hábito de ter o jornal pelas manhãs – junto ao pão francês, o café turco e o leite puro de rebanho holandês.
As páginas abertas farfalham em breves e sacudidos movimentos de um ginasta e leitor simultâneos, agitam-se as cortinas.
– Sossega coração –
Na sala, o francês, o turco e o holandês alinham-se, sentinelas solitárias assegurando, pelo pão, o café e o leite, a permanência do matutino que por certo tempo ele pensou falar do distante mundo – e ainda lhe acenar com as novas a manhã, próximas ao peitoril da janela.
Mas, para além das cortinas, a paisagem não se move. O mar perdura uniforme em confronto com a cidade. A linha dos prédios e o maciço de montanhas não se alteram ao olhar. Nenhum transeunte passa. Nenhuma palma se inclina.
Nenhuma força moral pesada como a tempestade.

[1] Carlos Ceia: s.v. "Abjecção", E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, , consultado em dd-mm-20aa
http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&link_id=399:prosa-poetica&task=viewlink
[2] HAYMAN, D. Re-forming the narrative: toward a mechanics of modernist fiction, Ithaca: Cornell University Press, 1987. 
[3] Ouvroir de Littérature Potentielle, criada em 1960 por Raymond Queneau, Ítalo Calvino, Georges Pérec, entre outros.
[4] ROSENFIELD, K. H. A linguagem liberada. São Paulo: Perspectiva, 1989. Série Debates.
[5] “L’étranger”, de Edmond Jabès, poema do conjunto “Petites incursions dans le monde des masques et des mots” [1956], tradução de Fernando Paixão.
[6] “An oyster shell”, de Robert W.Bly. Tradução de Fernando Paixão. In: JOHNSON, P. (Org.) The best of prose poem: an international journal. New York: White Pine Press, 2000.
[7] De Zulmira Ribeiro Tavares. In: O nome do bispo. São Paulo: Brasiliense, 1985.